Doses maiores

28 de fevereiro de 2014

Nos jardins murados, o ranger de dentes

“Quando um serviço centralizado na web é gratuito, a mercadoria é o cliente”. A frase é de Pedro Rezende, professor de Ciência da Computação da UNB. Foi dita em entrevista para a IHU On-Line, publicada em 27/02.

Segundo Rezende nossos dados pessoais e “rastros digitais” estão sendo monetizados na forma de poder simbólico para o dono do serviço. Ele diz que “o nome do jogo é controle” e é parte essencial de um plano para “implantar um regime dominante de vigilantismo global”, usando como camuflagem o combate ao terrorismo, ao cibercrime, etc. E lembra também que controle em grego é “cyber”.

Segundo o professor, as “batalhas ainda são pelo controle consentido”. Estariam sendo travadas no “front psicológico, onde a vaidade e o fetichismo funcionam como boas iscas”. Rezende é pessimista. Quem quiser “exercer seu direito constitucional à intimidade e à privacidade”, a saída é não instalar nem usar aplicativos.

Resende diz que o WhatsApp, por exemplo, pode ser chamado de “jardim murado”. A ferramenta só opera onde o seu desenvolvedor permite e envia a servidores centralizados tudo que lhe interessa sobre o tráfego de dados. E destes são retidos “tudo que o dono do jardim quiser, para usar como bem entender”.

Ele conclui a entrevista citando uma parábola bíblica de Mateus. Ela diz que no final dos tempos, os anjos prenderão todos em uma rede. Os justos serão poupados e os perversos lançados ao fogo, onde haverá choro e ranger de dentes.

Os administradores das redes cibernéticas certamente não são angelicais. Se depender de sua perversidade, serão os justos que acabarão rangendo os dentes.


27 de fevereiro de 2014

Na economia, Dilma tranquila. Na política, a esquerda perdida

Carlos Pinkusfeld Bastos publicou um artigo importante sobre o desempenho econômico do governo Dilma. Trata-se de “É a economia, estúpido?”, publicado pelo jornal argentino Página/12, em 24/02. Os dados apresentados ajudam a entender porque Dilma continua bem avaliada pela população.

Um exemplo é o crescimento do PIB. Para 2013, espera-se uma modesta elevação de 2,5%. Mas, diz Bastos, o desemprego está em 4,3%, o menor “da história para as regiões metropolitanas”. A conclusão é óbvia: o emprego é muito mais importante para a população do que o PIB.

Outro fator importante seriam aumentos reais nos salários: 1,8%, em média. Mas para trabalhadores não registrados, o índice chegou a 5,6%. Sem falar no aumento real do salário mínimo de 2,5%. A inflação também parece sob controle, ainda que pese cada vez mais nos bolsos dos mais pobres.

Nada disso impede que o governo continue a administrar um país que oferece uma das mais altas taxas de exploração do trabalho no mundo. Os dados apenas mostram que a economia dificilmente apresentará dificuldades suficientes para impedir a reeleição de Dilma.

Isso pode ser confirmado pelas próprias jornadas de junho. Quando elas começaram, apenas a luta contra o aumento das passagens era uma bandeira puramente econômica, apesar de ser a mais importante.

A indignação popular parece ir muito além das questões econômicas. Entre suas causas, há certamente um enorme descontentamento com as instituições políticas e de representação em geral. As mesmas que a direita dirige com facilidade e a esquerda tenta controlar desesperada e inutilmente.

26 de fevereiro de 2014

Colunistas de Sodoma e Gomorra e outras pragas

Deus destruiu Sodoma e Gomorra porque nas duas cidades não havia nem dez justos. Mas a fábula judaico-cristã sugere que se houvesse ao menos um deles, ele teria poupado seus habitantes.

Quando a esquerda revolucionária joga conversa fora nos bares, costuma fazer “listinhas de fuzilamento”.  “Quando a revolução chegar, quem merece paredão, e quem merece perdão?” debatem os gozadores.

Os colunistas da grande imprensa nacional certamente não escapariam. Mas inspirados na história bíblica, poderíamos perguntar se há, pelo menos, alguns justos entre esses profissionais. Neste caso, gente como Luis Fernando Verissimo, Janio de Freitas, José Miguel Wisnik e Francisco Bosco poderiam ser responsáveis por salvar a pele de seus colegas. A de Caetano, inclusive.

O Vidigal não saiu na foto

O Village Mall é um luxuoso shopping carioca. Em uma grande foto que decorava um de seus ambientes aparecia uma imagem da praia de Ipanema, tendo ao fundo o Morro do Vidigal. Mas a grande favela que existe em suas encostas sumiu. Foi substituída digitalmente por mata “virgem”. Diante de protestos, a direção do shopping retirou a foto, alegando que não havia notado o retoque. Quem deixaria de notar o desaparecimento de uma comunidade que existe desde 1940? Somente aqueles que gostariam de realmente dar um sumiço nela.

Carrasco todo contente

Recentemente, o policial Manoel Aurélio Lopes deu um depoimento à Comissão da Verdade de São Paulo. Ele atuou no Dops e no Doi-Codi e admitiu ter participado de atos de tortura. O veterano carrasco tem 77 anos e teria declarado estar “contente com a vida que teve até aqui “. Alguma dúvida?

25 de fevereiro de 2014

Cabras marcados para viver

A notícia da semana nos mercados foi a compra do WhatsApp pelo Facebook. Por US$ 19 bilhões, o gigante das redes virtuais comprou o aplicativo que facilita a comunicação entre celulares de forma simples e gratuita.

Mas os investidores querem saber: como o dono do Facebook fará para recuperar um investimento tão grande com uma ferramenta que não utiliza anúncios? Mark Zuckerberg teria dito que anúncios não são a única maneira de ganhar dinheiro com mensagens.

A resposta poderia ser enigmática, mas não é. Basta assistir ao documentário “Sujeito a Termos e Condições” para começar a entender. A produção de Cullen Hoback mostra o que acontece quando aceitamos utilizar os serviços online "gratuitos".

Basicamente, o filme mostra que as condições de adesão permitem que todos os nossos dados fiquem à disposição de empresas e governos por tempo indefinido. E não adianta apagar suas contas e perfis. As informações continuarão lá, invisíveis para todos, menos para o poder político e econômico.

Mas não é só isso. As identificações biométricas também se tornarão obrigatórias em muito breve. Os registros eletrônicos de digitais, palmas da mão, íris dos olhos serão cada vez mais frequentes. Sem eles não poderemos, por exemplo, movimentar a conta bancária ou comprar mercadorias em promoção no supermercado.

E para que serve tudo isso? Para nos assediar com “ofertas imperdíveis”, mas também para nos controlar. Seremos cada vez menos seres humanos complexos e mais identidades biológicas simplificadas. Cada escolha e opção, uma obrigação. Teleguiados pelo Estado e tutelados pelo mercado. Cabras marcados para viver segundo normas que nos são totalmente alheias.

Texto inspirado em “Por uma Teoria do Poder Destituinte”, de Giorgio Agamben

24 de fevereiro de 2014

Democracia policial e mídia ditatorial

Em 23/02, o presidente ucraniano Viktor Yanukovich foi deposto pelo parlamento do país. Aparentemente, sua queda foi uma vitória das forças fascistas que lideravam as manifestações da oposição. Mas tudo indica que a violenta repressão ordenada por Yanukovich contra os manifestantes também foi decisiva.

São cada vez mais frequentes as notícias de forças policiais espancando e matando manifestantes em vários pontos do planeta. E não é de agora. Lembremos as greves e manifestações na Grécia, a partir de 2008. Ou as violentas remoções daqueles que ocuparam as praças de várias cidades na Europa e Estados Unidos no mesmo período.

No Brasil, vem acontecendo o mesmo desde junho do ano passado. O caso mais recente ocorreu em São Paulo. Havia pelo menos um PM para cada três manifestantes nos protestos do dia 22/02. Mais de 270 pessoas foram presas. As agressões policiais foram distribuídas farta e aleatoriamente. Tudo isso, sem que a legislação “antiterrorismo” tenha sido aprovada.

À medida que a repressão aumenta, os monopólios da grande imprensa tentam justificá-la. Apresentam a violência policial como resultado de provocações feitas pelos manifestantes. As imagens que mostram que a realidade é o oposto disso ficam restritas às redes virtuais. Às páginas cibernéticas, cujo alcance é menor e muito mais segmentado que o das mídias tradicionais.

Com apoio da ditadura da mídia empresarial, os aparatos repressivos estatais tentam implantar “democracias policiais” pelo mundo. Que o destino de Yanukovich sirva de alerta para aqueles que ocupam os governos. Enquanto oscilam entre a cumplicidade assassina e a omissão covarde, o fascismo se prepara para dar o bote.

21 de fevereiro de 2014

Os alarmes da humanidade

Em 20/02/2014, Luis Fernando Veríssimo publicou a crônica “O alarme” em O Globo. Ele cita o filme de Stanley Kubrick “2001 — Uma odisseia no espaço”. Lembra que a produção baseia-se no conto de Arthur C. Clarke “O sentinela".

Na obra de Clarke, o monólito negro que é descoberto enterrado na Lua é uma espécie de alarme. Uma vez localizado, dispara um sinal para seus criadores extraterrestres. Esse sinal indicaria que a raça humana finalmente havia alcançado o desenvolvimento tecnológico necessário para alcançar as estrelas.

Veríssimo utiliza essa ideia para especular sobre os destinos da humanidade. Os eventos cada vez mais violentos, as crises crescentemente agudas, as catástrofes aparentemente mais numerosas. Antes disso, o fascismo, o nazismo, as bombas atômicas. 

Tudo isso não indicaria que já passamos do momento em que um alarme já deveria ter soado, pergunta o cronista. “Quando chegará o momento, diz ele, que nos convencerá que isto aqui não tem jeito mesmo, e a procurar uma saída? Será que o momento já veio e já foi, e nós não notamos?”.

Difícil saber. Mas uma ou outra notícia pode aliviar o peso dessa dúvida. Uma delas apareceu nos jornais em 21/02: “Bebê inconsciente é salvo durante engarrafamento nos EUA". Trata-se de uma mulher que deixou o filho de três anos em seu automóvel para fazer respiração boca a boca em um bebê de cinco meses que parara de respirar.

É uma notícia simples e delicada demais para fazer frente às outras inúmeras, brutais e complicadas. Mas nos dá a esperança de que existam outros tipos de alarme. Precisamos ficar atentos a eles também.

20 de fevereiro de 2014

Os black blocs e a violência revolucionária

A ação dos black blocs coloca em questão o papel da violência revolucionária. Tema que Engels abordou em uma introdução ao livro “As Lutas de Classes na França”, de Marx. Até 1848, diz o texto, os enfrentamentos entre revoltosos e o exército se davam em relativa igualdade de condições. Até então, as forças populares podiam fabricar suas próprias munições.

Mas com a produção industrial de armamentos, o poderio militar da burguesia ficou incomparavelmente maior. Desde então, diz Engels, “os poderes dirigentes” tentam atrair as forças populares para o combate aberto, apenas para transformá-las em carne para seus canhões.

Ou seja, desde meados do século 19, a derrota militar das forças da repressão teria deixado de ser fator decisivo para a vitória das revoluções. A Revolução Russa, por exemplo, começou sem enfrentamentos bélicos. As tropas do czar simplesmente se recusaram a atacar os revoltosos. Depois é que veio banho de sangue promovido pela reação conservadora.

Isso não quer dizer que os combates de rua já não joguem nenhum papel, diz Engels. Mas a inferioridade militar “terá que ser compensada por outros fatores”. Entre eles, a organização em larga escala dos explorados, muito mais numerosos que seus exploradores.

As ações dos black blocs não são necessariamente contraditórias com essa avaliação. Eles alegam que são atos simbólicos e não militares. Seus alvos são coisas, não pessoas, e procuram limitar-se à autodefesa. Mas isso também não quer dizer que suas opções estejam corretas.

É este o debate a ser feito. Passa muito longe da criminalização e do isolamento de manifestantes com quem possamos ter diferenças táticas, mesmo que profundas.

18 de fevereiro de 2014

Protestar não é crime. Governar pode ser

Está em discussão no Senado uma “lei antiterrorismo”. Proposta apoiada por parlamentares como Jorge Viana (AC) e Paulo Paim (RS). Ambos são do PT, partido que governa o País há 13 anos, além de muitos municípios e estados. O objetivo alegado é evitar pânico. O real é impedir manifestações contra a Copa.

Se aprovada, deveria ter como alvo principal os próprios governantes. Essas autoridades devidamente eleitas se curvam ou são cúmplices de aparatos que jamais passaram pelo voto popular. Um deles é a máquina mortal da polícia militar, cujas ações subvertem todas as leis de respeito à dignidade humana e à liberdade.

Outro poder acima de qualquer controle democrático é o Banco Central, cujas decisões econômicas afetam dezenas de milhões de pessoas. No Brasil, a maioria pobre paga as maiores taxas de juros do planeta. A minoria formada por banqueiros-empresários aproveita essas mesmas taxas para lucrar bilhões em especulações financeiras.

Mas há também os centros de poder externos ao País. É o caso da agência classificadora de risco “Standard & Poor’s”. Segundo matéria de Angela Bittencourt no Valor, em 14/02, uma representante da agência deve passar por Brasília, São Paulo e Rio, em março próximo. Sua missão é monitorar o pagamento dos compromissos dos governos brasileiros com a dívida pública.

Essas agências de avaliação chantageiam os povos do planeta e zelam pela manutenção da enorme desigualdade social que se espalha pela humanidade. A imensa maioria dos governantes se submete a tudo isso sem qualquer resistência. Afinal, passaram pela aprovação de urnas controladas pelo poder econômico para cumprir exatamente essa função: governar impondo o terror econômico.


17 de fevereiro de 2014

Massa polar se aproxima da economia mundial

“Calor já freia a economia e previsão para o PIB cai a 1%”, disse o Globo em 17/02. Segundo a notícia, altas temperaturas e pouca chuva levariam a racionamentos de água e de energia. Essa combinação pressionaria a inflação e traria prejuízos à atividade econômica.

Dizem que previsões econômicas só costumam ser mais precisas que as meteorológicas. Mas independente disso, o fato é que uma forte frente fria realmente pode estar prestes a chegar à economia. E não apenas no Brasil.

Em recente artigo, Immanuel Wallerstein prevê, para breve, tempos ruins para a economia mundial. O texto publicado no Opera Mundi, em 08/02, é “Crise dos ‘emergentes’ ou do Sistema?”. Segundo o autor nas duas últimas semanas de janeiro, o Wall Street Journal, o Financial Times, o Main Street, a agência Bloomberg, o New York Times e o FMI alertaram para o possível “colapso” dos “mercados emergentes”.

O baixo crescimento chinês é uma das causas. Outra delas é a recuperação econômica americana. Apesar de pequena, tem atraído de volta os dólares que andaram circulando pela periferia mundial. Mas nem nos Estados Unidos, nem na Europa há sinais de tempo bom. E as esperanças que foram depositadas nos “emergentes” no início do colapso econômico se dissiparam como nuvens passageiras.

O radar do articulista indica pânico nas notícias dos jornalões que citou. Elas mostrariam que a crise pode deixar de ser cíclica para torna-se estrutural. “Não pode ser resolvida com paliativos, mas com a invenção de um novo sistema”, diz ele. Mas não sem antes provocar muitos raios e trovoadas, diríamos nós.

Os cantos escuros da democracia

Em 15/02, o caderno “Prosa” do Globo destacou obras recentes sobre o golpe de 64. Elio Gaspari, Daniel Aarão Reis e Antonio Villa estão entre os autores lembrados.

Alguns deles defendem interpretações perigosas para o golpe. Dizem que a intervenção militar teria impedido a instalação de uma ditadura de esquerda. Mas todas as evidências mostram que Jango e os comunistas respeitavam a legalidade como coisa sagrada. Já os militares, não hesitaram em atropelar leis e esmagar liberdades.

Mas também há detalhes importantes sendo revelados. Aarão Reis lembra, por exemplo, que Ulysses Guimarães foi um dos líderes da Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Também afirma que D. Paulo Evaristo Arns apoiou a movimentação das tropas golpistas. E que Juscelino Kubitschek teria aprovado o golpe “com reservas”.

Tudo isso pode ajudar a entender a natureza do regime político sob o qual vivemos. Ele é fruto de uma “transição democrática” feita sob o controle de homens de confiança da ditadura. Entre eles, Sarney e muitas outras lideranças que permanecem gozando de amplas liberdades e invejável bem estar.

Por outro lado, o aparato de repressão que a ditadura aperfeiçoou continua intacto. Trata com enorme violência as manifestações populares e o cotidiano dos mais pobres. Mostra que os efeitos do golpe permanecem não apenas na arena política. O aparelho policial militarizado age com uma liberdade que é tolerada ou incentivada por seus chefes civis.

Se olharmos para os cantos escuros da democracia em que vivemos, veremos que aumenta de tamanho a ameaçadora sombra da ditadura. Entre os que colaboram para seu avanço estão alguns dos que foram suas vítimas.

Leia também:

13 de fevereiro de 2014

Também já fomos black blocs

Muita gente boa e veterana da esquerda acusa os black blocs de fazer o jogo da direita. Dizem que na luta contra a ditadura militar, nas greves gerais e passeatas dos anos 80, ninguém precisava fazer uso de máscaras e depredação.

Parecem esquecer as muitas pauladas, pedradas e os murros trocados nos piquetes e manifestações daquela época. Parecem não lembrar de que também fomos acusados de fazer o jogo da direita.

A velha guarda comunista e os sindicalistas pelegos condenavam nosso radicalismo. Diziam que acabaríamos fazendo os militares voltarem atrás na “transição democrática”. Nos denunciavam por dividir a oposição ao formar um partido de grevistas e uma central sindical vermelha. Para eles, até Lula era um black bloc!

Se dependesse desses críticos, estaríamos até hoje escondidos nas “alas esquerdas” do PMDB ou do PSDB. Não teríamos formado o PT e a CUT, que nos anos 1980 arrancaram conquistas nos bairros, escolas, fábricas e ruas.

Claro que já não estamos sob uma ditadura. Temos eleições periódicas e liberdade de greve e sindicalização. Mas o aparato da repressão continua intacto, atuante e vem asfixiando a democracia e pisoteando a liberdade. E são os manifestantes nas ruas que estão resistindo. Não os engravatados de gabinete.

Todos corremos o risco de fazer o jogo conservador. Mas há os que já deixaram para trás esse perigo. São os que apoiam medidas legais contra as manifestações. As autoridades eleitas que se recusam a deter a violência policial. Os que vem administrando o poder com e para a direita há anos.

Poderiam, pelo menos, nos fazer o favor de esconder a cara.

12 de fevereiro de 2014

O Corão e o pluralismo religioso

Em 11/02, completaram-se os 35 anos da revolução iraniana. A imagem construída pela grande mídia é a de um país em que apenas os muçulmanos teriam liberdade religiosa. Independente do quanto isso é verdade, o islamismo não autoriza essa interpretação.

É o que diz Reza Aslan em seu livro “No god but God”. Segundo ele, secularismo não é o mesmo que secularização. Citando o teólogo protestante Harvey Cox, o autor diz que secularização é o processo pelo qual “certas responsabilidades passam das autoridades religiosas às autoridades políticas”. Seria uma evolução histórica em que a sociedade se liberta gradualmente do “controle religioso e de visões de mundo fechadas em sua metafísica”.

Já o secularismo, é uma ideologia baseada na erradicação da religião da vida pública. Um exemplo de país secular seria a Turquia, onde sinais exteriores de religiosidade, como o véu islâmico, são proibidos. Por outro lado, os Estados Unidos são um país secularizado, afirma Aslan. Há quase duzentos anos Alexis de Tocqueville já havia dito que a religião é a base do sistema político americano. Ela não só reflete os valores sociais americanos, mas muitas vezes os impõe, diz o autor.

Para Aslan, o que define a democracia é o pluralismo, e não o secularismo. E, segundo ele, o islamismo sempre teve compromisso com a diversidade religiosa. Entre as escrituras das grandes religiões, poucas podem superar o respeito com que o Corão fala de outras tradições religiosas. Para demonstrar, o autor cita um verso “indiscutível”: “Não pode haver compulsão na religião”.

Deus pode ser único, diz Aslan, mas o islamismo jamais pretendeu ser a única religião.

Leia também: As origens igualitárias da fé muçulmana

11 de fevereiro de 2014

Pequeno sumário indignado

A polícia chega à favela e mata. Alguém condena: "Era um trabalhador!" Ou seja, fosse um vagabundo, a morte estaria justificada.

Pelo menos, sete pessoas morreram desde junho passado nas manifestações. Quatro devido a ações policiais. Nada justifica essas mortes. Ninguém que as tenha causado deveria sair impune. Mas a justiça deve ser feita para todos, não apenas para quem trabalhava para uma empresa poderosa.  

Veja abaixo a lista dos mortos:

Luiz Felipe Aniceto de Almeida e Douglas Henrique Oliveira morreram depois de cair do Viaduto José Alencar, em Belo Horizonte, durante ação repressiva da PM.

Marcos Delefrate, atropelado por um automóvel particular durante manifestação em Ribeirão Preto.

Paulo Patrick, atropelado por um táxi durante manifestação em Teresina.

Cleonice Vieira de Moraes, intoxicada por gás lacrimogêneo durante manifestação em Belém do Pará.

Fernando Silva morreu no Rio de Janeiro por complicações respiratórias causadas por gás lacrimogêneo.

Santiago Ilídio Andrade, morto ao ser atingido por um rojão disparado por um manifestante no Rio de Janeiro.

Enquanto isso, há uma proposta de instalar uma CPI sobre vandalismo na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Não há notícia de pedidos para instalar CPIs sobre a violência policial.

Quem foi o único preso e condenado desde o início das manifestações em 2013? O carioca Rafael Braga Vieira, sentenciado a cinco anos de prisão. Ele é catador de material reciclável e carregava um frasco de “Pinho Sol”. Segundo os policiais, ele pretendia usá-lo como um coquetel molotov. Estava em liberdade condicional relativa a uma condenação por roubo.

10 de fevereiro de 2014

O MST e o projeto político petista

De 10 a 14 de fevereiro, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra realiza seu 6º Congresso Nacional. São 15 mil participantes vindos de todo o País.

O MST é, sem dúvida, um dos maiores e mais heroicos movimentos populares da história brasileira. Milhares de seus membros foram vítimas de assassinatos, torturas, prisões injustas por lutarem por justiça social no campo e fora dele. Mas tudo indica que atravessa sua maior crise.

A raiz da crise está na paralisia que ataca de sua principal luta: a Reforma Agrária. E isso acontece exatamente sob o governo do partido que mais apoiou a criação e o fortalecimento dos Sem-Terra.

Não passam de 10 os imóveis desapropriados pelo governo Dilma. Pior que o último governo militar do general Figueiredo, quando foram desapropriados 152 imóveis.

Estas palavras são de João Paulo Rodrigues, dirigente nacional do movimento, em entrevista publicada na página do próprio MST em 18/12/2103. Enquanto isso, o agronegócio foi adotado como aliado prioritário pelos petistas no poder.

Os dirigentes do MST costumam dizer que os movimentos populares têm que “empurrar” o governo para longe do empresariado rural. Mas números do Ministério do Desenvolvimento Agrário mostram que os Sem-Terra fazem o movimento inverso. Segundo os dados, a média anual de ocupações de terra no período FHC foi de 305 e nos de Lula e Dilma, 224.

Um movimento social não é um partido político. A revolução social ou a conquista de governos não estão no programa do MST, nem deveriam estar. Mas o movimento precisa se afastar do projeto político petista, se quiser voltar a conquistar vitórias.

Dívida Pública: historinha sem nenhuma moral

Vamos usar o modelo preferido dos neoliberais para relacionar a dívida pública à desigualdade social brasileira. Imagine uma família com seis filhos. Cinco deles e a mãe passam fome. Enquanto isso, um dos filhos e o pai vivem no maior luxo.

Essa mesma família tem guardados R$ 300 mil. Mas ninguém pode mexer nesse dinheiro. Ele está reservado para pagar os juros de uma dívida contraída pelo pai junto a agiotas vigaristas. O pagamento precisa ser honrado mesmo que a maior parte da família passe fome.

Esta é a situação da dívida pública brasileira, atualmente em R$ 2,3 trilhões. Somente o pagamento de seus juros ficará com 42% dos recursos do orçamento público em 2014. Enquanto isso, para a saúde irão menos de 4%, a educação ficará com pouco mais de 3% e os transportes, 1%.

Para rolar dessa dívida, o governo vende títulos que pagam os maiores juros do planeta. São corrigidos pela taxa Selic, que está em 10,5%. Segundo um estudo de Marcio Pochmann divulgado em 2009, apenas 20 mil famílias brasileiras detém 80% desses papéis tão rentáveis.

Mas o que pouca gente sabe é que taxa de juros paga pela dívida pública é ainda maior. Ela é resultado da diferença entre os altos juros pagos pelo Tesouro a seus devedores e os juros módicos que cobra nos empréstimos que faz ao setor privado. O resultado é uma taxa de estratosféricos 19,8%!

Ou seja, enquanto quase toda a família passa fome, o pai nada em dinheiro, engorda o agiota e ainda empresta bem barato a grandes empresários. Moral da história? Não tem nenhuma.

Leia também: Sua família dá lucro?

6 de fevereiro de 2014

O buraco negro da desigualdade capitalista

O físico Stephen Hawking teria afirmado, recentemente, que buracos negros não existem. Buracos negros são os restos mortais de imensas estrelas. Eles geram uma enorme força gravitacional que arrasta para seu interior tudo que está a sua volta, inclusive a luz.

Se Hawking está certo ninguém sabe. Mas na economia capitalista, a existência de algo parecido aos buracos negros parece confirmada. A enorme concentração mundial de riqueza só faz aumentar. E isso foi admitido no último Fórum Econômico Mundial, realizado em Davos. Durante o evento foi divulgada a pesquisa “Trabalhando para Poucos”, da ONG inglesa Oxfam.

O estudo revela que o patrimônio das 85 pessoas mais ricas do mundo equivale às posses de metade da população mundial. Este minúsculo grupo concentra US$ 1,7 trilhão. Valor que equivale aos bens das 3,5 bilhões de pessoas mais pobres do mundo. Além disso, a riqueza do 1% das pessoas mais ricas do planeta equivale a US$ 110 trilhões. Ou 65 vezes a riqueza total da metade mais pobre da população mundial.

Essa tendência vem se agravando desde a crise de 2008. Nos Estados Unidos, país mais capitalista do mundo e onde a crise começou, a concentração de riqueza continua aumentando. No estudo da Oxfam, 95% dos ganhos de renda verificados a partir de 2009 naquele país ficaram com o 1% mais rico. São números que ofuscam até os mais negros dos buracos. Mas trata-se de um fenômeno que Marx já havia previsto ao estudar as primeiras crises capitalistas.

Não custa lembrar também que a palavra revolução chegou ao vocabulário político inspirada em um dos movimentos dos corpos celestes.

5 de fevereiro de 2014

O fetichismo da mercadoria sobre rodas

O domínio do automóvel nas grandes cidades brasileiras pode servir como um grosseiro exemplo do que Marx chamou de fetichismo da mercadoria.

O grande revolucionário alemão criou esse conceito para tentar explicar o caráter mistificador da economia capitalista. Uma forma de produção em que as relações humanas são cada vez mais intermediadas pelas coisas. Mais especificamente, pelas mercadorias. São elas que têm uma vida social, enquanto nós somos meros portadores de suas marcas, especificações, cores, modelos.

No caso dos automóveis, basta olharmos para os gigantescos engarrafamentos urbanos. Milhões permanecem sentados por horas em suas bolhas de metal, lado a lado, sem se comunicar. Um ralo diálogo só ocorre pelos sinais emitidos por faróis, lanternas, buzinas ou por uma mímica cheia de insultos. Qualquer proximidade será mero acidente. Literalmente. São aqueles momentos em que a integração finalmente acontece através de mortes e mutilações mutuamente causadas.

A inversão típica do fetichismo mercantil também se manifesta na relação com os pedestres. São estes que devem tomar cuidado com os automóveis e não o contrário. Ninguém reduz a marcha, mesmo que ameace esmagar com uma tonelada de aço e ferro os 80 kg de osso e carne de um infeliz caminhante distraído. Pior que isso. Ninguém se pergunta por que usamos tanta energia para colocar em movimento uma tonelada de minério fundido com o objetivo de transportar 70 kg ou 80 kg de vida frágil e perturbada.

O fetichismo da mercadoria dá a ilusão de que as coisas se movem sozinhas. É como se automovessem. Talvez, nem Marx fizesse ideia da encrenca que estava por vir.

4 de fevereiro de 2014

Rosa Luxemburgo, os primeiros cristãos e o último Papa

Em janeiro, completaram-se os 95 anos da morte de Rosa Luxemburgo. A obra da grande revolucionária polonesa ainda é pouco conhecida. Uma lacuna que a esquerda terá que preencher se quiser realmente transformar o mundo.

Uma de suas obras mais interessantes é  “O Socialismo e as Igrejas”, publicada em 1905. Lembrando o ódio da alta hierarquia católica aos revolucionários, Rosa lembra:

...é chocante notar que os padres de hoje, que combatem o comunismo, condenam, na realidade, os primeiros apóstolos cristãos. Estes não passaram, de fato, de ardentes comunistas.

A confirmar essa avaliação, Rosa cita os versículos 32 a 45 do capítulo 4 dos Atos dos Apóstolos. É uma descrição da primeira comunidade cristã de Jerusalém:

Todos os que abraçaram a fé estavam unidos e tudo partilhavam. Vendiam as suas propriedades e os seus bens para repartir o dinheiro apurado entre todos, segundo as necessidades de cada um.

A multidão dos fiéis tinha uma só alma e um só coração. Não chamavam de própria nenhuma de suas posses: ao contrário, tinham tudo em comum. Não havia indigentes entre eles... A cada um era repartido segundo a sua necessidade.

Felizmente, desde então, surgiram tendências e correntes internas aos cristãos que procuram honrar seus primeiros antepassados. Por isso mesmo, vêm sofrendo enorme perseguição há décadas. Principalmente, a partir do papado de João Paulo 2º.

O último papa procura demonstrar maior sensibilidade social. Mas seria necessário muito mais que isso. A começar pela venda do gigantesco patrimônio da Igreja Católica e sua partilha entre os pobres. Milagre que jamais chegaremos a presenciar.

3 de fevereiro de 2014

O hip-hop não precisa de reconhecimento oficial ou profissionalização

Está no Congresso Nacional um projeto de lei que pretende declarar o hip-hop “manifestação de cultura popular de alcance nacional”. Algo parecido com o que aconteceu com o funk no estado do Rio de Janeiro.

Em 2007, uma resolução do secretário estadual de segurança José Mariano Beltrame proibia a realização de eventos de culturais, esportivos e sociais sem a autorização policial prévia em algumas áreas do Rio de Janeiro. O maior alvo da medida eram os bailes funks nos bairros pobres.

Em 2009, entrou em vigor a lei que define o funk como movimento cultural popular. Desde então, o gênero musical passou a ser parte do patrimônio cultural oficial do Rio de Janeiro. A resolução de Beltrame não poderia mais ser aplicada.

Mas os bailes continuam sendo reprimidos pela Polícia Militar. O que não é de se estranhar. Se a polícia mata e executa pobres à revelia da lei, por que respeitaria manifestações culturais?

Outra proposta legislativa relacionada ao hip-hop pretende profissionalizar seus integrantes. Esta é do deputado Romário e é ainda mais complicada. Prevê, por exemplo, criar figuras como o aprendiz e o estagiário de hip-hop!

Por trás dessas propostas há quem queira controlar um movimento cultural que nasceu rebelde. São forças ligadas a governos e ao empresariado, com grande auxílio de ONGs oportunistas. As atividades desenvolvidas pelos adeptos do hip-hop podem ser profissionalizadas sem necessidade de transformá-lo em uma atividade laboral.

Para entender melhor o que está em jogo nessa questão, acesse o documento do coletivo Lutarmada, aqui. “Por um Hip Hop autônomo e combativo”.

2 de fevereiro de 2014

Privatizações petistas: dinheiro público, lucros privados

As privatizações petistas são mais discretas que as tucanas. Elas privatizam mais os recursos do Estado do que seu patrimônio. Um exemplo é o programa “Minha Casa Minha Vida”.

Em 30/01, a Carta Capital publicou o artigo “Como não fazer política urbana”, de Ana Paula Ribeiro, Guilherme Boulos e Natalia Szermeta. O texto revela que após anos de existência do programa, “o déficit habitacional aumentou em quase 1,5 milhão de moradias”.

Para entender como isso aconteceu, o melhor é ler o texto. Mas, basicamente, o artigo diz que o programa acabou beneficiando cinco gigantes do mercado: Odebrecht, Camargo Correia, OAS, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão. Essas empreiteiras entregaram 1 milhão de novas casas. Mas 2,5 milhões de famílias perderam suas moradias devido à enorme especulação imobiliária.

Algo parecido ocorre no setor educacional. Grandes grupos de ensino foram turbinados pelos recursos públicos do Prouni e do Fundo de Financiamento Estudantil. As ações na Bolsa do setor dispararam. O valor de mercado do grupo Anhanguera cresceu 29%, do Kroton, 73% e da Estácio, 47%. 

Apesar disso, a Gama Filho e a UniverCidade deixaram professores sem salários e alunos sem aulas no Rio de Janeiro. E vem mais por aí. O Plano Nacional de Educação em debate no Congresso quer mais vagas públicas nas escolas. Mas elas podem ser oferecidas também pelo setor privado, mediante financiamento público.

Na saúde, a ofensiva acontece via terceirização da gestão dos hospitais federais por empresas. O objetivo é fazer convênios para que os planos de saúde passem a utilizar a rede de atendimento do SUS.

A criatividade petista assusta. E dá vergonha.

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