Doses maiores

31 de maio de 2017

A esquerda precisa quebrar alguns espelhos

O inglês David Harvey é um dos intelectuais marxistas mais influentes da atualidade. Em entrevista publicada pelo portal "Outras Palavras", em 30/05, ele pergunta:

...o que faz com que cada modo de produção dominante, com sua configuração política particular, crie um modo de oposição que se constitui em seu reflexo? À época da organização fordista da produção, o reflexo era um movimento sindical centralizado e partidos políticos baseados no centralismo democrático. À época neoliberal, a organização da produção para uma acumulação flexível produziu uma esquerda que é também, na verdade, seu reflexo: trabalho em redes decentralizadas, não hierarquizadas. Penso que é muito interessante. E até certo ponto, o reflexo do espelho valida o que tentava destruir. O movimento sindical, assim, sustentou o fordismo.

Penso que neste momento muita gente à esquerda, sendo muitos autônomos e anarquistas, reforçam na verdade o neoliberalismo em seu jogo final. Muita gente de esquerda não quer saber dessa afirmação. Mas a pergunta que se coloca é, evidentemente: haverá um meio de se organizar que não seja no espelho do neoliberalismo? Podemos quebrar esse espelho e organizar qualquer outra coisa, que não jogue o jogo do neoliberalismo?

Realmente, o reflexo do fordismo nos deu muitas organizações de esquerda burocratizadas e hierarquizadas segundo o autoritarismo das fábricas.

Já na atual configuração neoliberal, o maior risco é a dispersão. Afinal, à frouxidão e flexibilidade de movimentos do capital a que assistimos corresponde um aparato de exploração e repressão dos mais injustos, centralizados e antidemocráticos.

Quebrar esse tipo de espelho deve fazer parte das tarefas das forças revolucionárias. Dá azar, mas só para nossos inimigos.

Leia também: A esquerda sob risco de perder a validade

30 de maio de 2017

Curtas & boas

Uma seleção de trechos da edição de 28/05, da Folha.

Para começar, Bernardo Mello Franco lembra que:

...em outubro de 1984, o cacique e deputado Mario Juruna convocou a imprensa para fazer uma denúncia contra si mesmo. Ele havia recebido propina do empresário Calim Eid para votar em Paulo Maluf no Colégio Eleitoral.

Arrependido, continua o colunista, o líder indígena foi ao banco devolver 30 milhões de cruzeiros.

Como Tancredo Neves venceu a disputa, ninguém quis investigar as suspeitas de suborno e caixa dois. Eid seguiu carreira como operador do malufismo. Juruna ficou desacreditado e não conseguiu se reeleger.

O historiador José Murilo de Carvalho explica que “se em 1930 votavam 5% da população, em 1945 já foram 13% (...), aí incluídas as mulheres”. Em 1960, os eleitores chegaram a 18%. Em 1986, 47%. E em 2014, eram 71% dos brasileiros, cerca de 140 milhões de pessoas.

Para ele, o sistema político nacional é incompatível com este crescimento da participação popular.

Talvez, as cada vez mais frequentes crises de representação sejam uma espécie de reação alérgica das classes dominantes ao povo.

Por fim, Elio Gaspari lembra “que 60% da população carcerária brasileira é composta por negros. Mas a Lava-Jato não prendeu um único negro”. Ao contrário, a operação teria “pegado sobrenomes ilustres”.

Faltou dizer que enquanto grande parte da população carcerária está presa mesmo sem qualquer sentença judicial, só alguns poucos dos muitos investigados pela Lava-Jato foram condenados. E, dentre estes, vários estão soltos. Seu único constrangimento é o de serem obrigados a usar tornozeleiras eletrônicas enquanto viajam, fazem compras e frequentam suas próprias piscinas.

Leia também: Para bom entendedor, meia palavra bas...

29 de maio de 2017

Mais momentos pouco épicos da Revolução de 17

São Petersburgo, 25 de outubro de 1917, 3:30h da manhã. O navio de guerra “Aurora”, sob comando revolucionário, ancorou perto do Palácio de Inverno. Viera reforçar o cerco à sede do governo provisório, cujos integrantes se recusavam a entregar o poder aos sovietes.

Os canhões do navio abriram fogo. Eram tiros de pólvora seca, mas a explosão de um canhão sem balas assusta mais do que se estivesse usando munição. Foi o bastante para vários soldados favoráveis ao governo provisório abandonarem seus postos.

Quando o navio disparou balas de verdade, quase todas caíram no Rio Neva. Uma delas explodiu logo acima da sala onde estavam os membros do governo. Mais soldados abandonaram o palácio.

Pouco antes de nascer o dia, finalmente o governo provisório anunciou sua rendição. Antonov, um militante bolchevique, entrou na sala e determinou a prisão de todos. Um dos detidos era do Ministério do Interior. Ele tirou do bolso um telegrama vindo da Ucrânia, entregou-o a Antonov, dizendo: "Recebi isso ontem. Agora, é com vocês."

Mais tarde, uma autoridade municipal que se recusava a reconhecer os sovietes ligou para o Palácio de Inverno. “Quem fala?”, perguntou. A resposta: "O sentinela". “O que está acontecendo aí?”. "Não há nada acontecendo aqui", disse o soldado e desligou.

Nesse momento, Lênin ainda ignorava a situação e andava em círculos em sua sala no quartel-general dos revolucionários, furioso com a demora para tomar o Palácio.

Foi desse modo pouco pomposo que os sovietes assumiram o poder na Rússia, segundo o livro “The Bolsheviks Come to Power” (“Os Bolcheviques Tomam o Poder”), de Alexander Rabinowitch, ainda sem tradução.

26 de maio de 2017

A esquerda sob risco de perder a validade

Você tem hoje uma massa enorme de jovens que entraram no mercado de trabalho num mundo onde as perspectivas de longo prazo já não existem mais. Você já tá tendo que pular de um emprego ao outro. Você tá numa busca desenfreada por certificados. Trabalha o dia todo, vai pra faculdade à noite, tem que fazer um curso de inglês, de informática. E quando você terminar o seu curso, vai fazer outro. Pra eles a situação não piorou, efetivamente. Pra alguns setores da classe trabalhadora pode ter piorado. Pra um jovem de 20 anos, não piorou porque sempre foi assim. Ele já entrou nesse mundo assim.

(...)

Não existe longo prazo (...). Você trabalha sempre com a perspectiva do próximo emprego, que vai durar seis meses. Se passar de seis meses, vai durar um ano. Se durar um ano, vamos tentar fazer durar um ano e meio. Se não durar um ano e meio, vou ter que ir atrás de outro.

(...)

Pra esse jovem que tá nessa situação, a ideia de que você tem uma disputa política a fazer, que você pode se organizar, entrar num partido e trabalhar num longo prazo, acumular forças, como se diz na esquerda, isso pra ele não existe. Não existe acúmulo de forças. Mal existe futuro.

Os trechos acima são de uma palestra do sociólogo Henrique Costa apresentada no IHU-Online, em 17/05. Vale a pena assistir. Muito do que fala esse jovem pesquisador faz pensar que há questões novas para uma esquerda presa no antigo.

Mas o problema não é envelhecer. O perigo é caducar.

25 de maio de 2017

Os vários golpes, os diversos golpistas

O mais recente ato desastrado de Michel Temer foi a decretação das Operações de Garantia da Lei e da Ordem. Na prática, as Forças Armadas foram chamadas a reprimir manifestações que ocorriam em Brasília contra o governo golpista e suas reformas neoliberais.

Muitos temiam e alguns desejavam que a iniciativa resultasse num golpe militar. Uma expectativa equivocada, pois desconsidera o permanente estado de intervenção militar que já vivemos há muito tempo.

O próprio Ministro da Defesa, Raul Jungmann, justificou a operação, alegando que:

...este instrumento é assegurado na Lei Complementar nº 97 de 1999 e pelo artigo 142 da Constituição Federal. De lá para cá, por exemplo, já ocorreram o emprego das Forças Armadas na Rio+20, na Jornada Mundial da Juventude, na Copa do Mundo, nos Jogos Olímpicos Rio 2016, e mais recentemente nas varreduras aos prédios, durante o aquartelamento de Policiais Militares do Espírito Santo e na crise de segurança no Rio de Janeiro, no começo de 2017.

Além disso, em 24/05 Luciana Amaral e Leandro Prazeres informaram no Portal UOL, que:

Segundo o site do Ministério da Defesa, um exemplo de uso das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem foi o emprego de tropas em operações de pacificação do governo estadual em diferentes comunidades do Rio de Janeiro.

E não nos esqueçamos que a partir de 2013, essa militarização ganhou novo impulso. Foi quando a vergonha caiu sobre o governo petista, que em resposta às enormes manifestações populares daquele ano aprovou uma lei antiterrorismo cujo alvo são os movimentos sociais.

Os golpes contra a democracia são muitos. Assim como os golpistas.

Leia também:

24 de maio de 2017

A Revolução de 1917, segundo Leminski

Paulo Leminski escreveu uma pequena biografia de Trótski, que é também um brilhante sumário da Revolução Russa.

Comecemos por um acontecimento fundamental para a vitória de 1917. Trata-se da Revolução de 1905. Foi nela que surgiram os sovietes:

...uma forma primária e original de democracia popular, nascida sem interferência das elites revolucionárias da intelligentsia. Uma democracia de baixo para cima, trabalhadores votando livremente em seus representantes, acatando suas deliberações, acompanhando suas diretrizes.

“A elite revolucionária foi apanhada de surpresa”, diz o poeta. Segundo ele:

Num primeiro momento, sempre zeloso da unidade de esforços e do papel condutor do Partido, Lênin condenou os sovietes, a democracia soviética. Certamente, os sovietes lhe pareciam forças desagregadoras, dispersivas, centrífugas. O bom andamento da revolução, agora, teria que contar com a laboriosa orquestração de centenas de assembleias de trabalhadores, broncos, primários, teoricamente desequipados, comparados com os brilhantes quadros de marxistas bolcheviques e mencheviques.

Nessas alturas, nem Lênin nem Trótski ainda concebiam a ideia de uma revolução e de um Estado totalmente baseado na classe trabalhadora, operários e camponeses. Diante da fraqueza da classe trabalhadora, alguma espécie de coalizão com a pequena burguesia e os estratos semiproletários seria inevitável, para o êxito da Revolução.

O atraso histórico da Rússia justificava a dúvida: revolução burguesa ou proletária? E qual seria a parte que caberia ao proletariado, na nova sociedade?

Os dois revolucionários responderiam a essas questões de forma determinante para a vitória de 1917.

Leminski, o anarquista, não deixa de denunciar vários elementos de autoritarismo e conservadorismo presentes no processo revolucionário. Mas jamais diminui sua enorme importância histórica para a luta socialista.

23 de maio de 2017

Trótski e Leminski, companheiros de exílio

Paulo Leminski escreveu uma pequena biografia de Trótski, lançada em 1986. Em 2013, a Companhia das Letras lançou “4 biografias (Cruz e Souza, Bashô, Jesus e Trótski)”, que a incluía.

Na introdução à edição, Alice Ruiz, viúva do poeta, explica porque Leminski teria escolhido o revolucionário russo para encerrar sua tetralogia de biografias:

Trótski serve de pretexto para que Paulo coloque sua visão, sua leitura pessoal sobre a Revolução Russa e sobre a própria ideia de revolução. Mas por que Trótski e não qualquer outro mais afortunado? Seria por sua fecunda habilidade com as palavras, por ser ele o mais intelectual de todos, por seu afastamento do poder, por sua participação na revolução? A soma de tudo isso e algo mais fez com que, apesar de anarquista, o eslavo Leminski escolhesse Trótski. Além da afinidade com o pensamento político e da profunda reflexão ideológica contida nesse trabalho, que Paulo considerava a chave de ouro para sua série de biografias, havia algo mais que o identificava com Trótski: o sentimento do exílio. Trótski exilado da terra pela qual lutou é Moisés impedido de entrar na terra prometida que ele ajudou a encontrar.

Paulo Leminski, a quem não interessava nada que não contivesse ideias e poesia, viveu nessa vida como um exilado. Como alguém que está fora do seu verdadeiro habitat. E precisa reinventar, através de signos, símbolos, sonhos e palavras, um simulacro mais próximo de seu conceito de vida. A poesia é como uma testemunha desse estranhamento.

Mas a biografia escrita por Leminski também é um brilhante resumo da história da Revolução Russa. Voltaremos a ela.

Leia também: Trotsky, Guevara e Leminski num bar de rodoviária

19 de maio de 2017

No meio da confusão, o jogo a ser jogado é nas ruas

Agora a bola está quicando nas ruas e quem mobilizar mais pode levar, incluindo um pacto político por Diretas Já e ano que vem com Eleições Gerais para uma Revisão Constitucional.

O trecho acima está em “Análise da crise política ao calor do momento”, artigo de Bruno Lima Rocha, professor de ciência política e de relações internacionais, publicado no IHU-Online em 18/05.

Segundo o autor, a crise atual mostra um Judiciário com um grau de autonomia que pode ameaçar muitas liberdades democráticas em nome de um moralismo conservador. Para ele, trata-se de “um aparelho de Estado que tem agenda própria e, por mais justa e legal que seja esta agenda, muitas vezes tem critérios no mínimo duvidosos”.

O sociólogo Jessé Souza, por exemplo, considera que o Judiciário tomou o lugar dos militares no papel de defensor autoritário da ordem. A hipótese é cabível, desde que descartada a ideia de que se trata somente de uma conspiração antipetista. Afinal, o golpe militar não matou e torturou apenas comunistas. Também cassou lideranças conservadoras como Carlos Lacerda. A direita sabe sacrificar alguns dos seus, quando necessário.

Por outro lado, não há nada que impeça uma “parceria” tenebrosa entre altos tribunais e gabinetes militares.

Também é recomendável não menosprezar o dispositivo econômico governamental formado por Banco Central e Fazenda, cujos titulares vêm sendo poupados pelas manchetes, apesar de estarem muito próximos da maior das corrupções, a dos grandes capitais financeiros.

É por tudo isso que, como diz Rocha, a única certeza é que a bola está “quicando” nas ruas. É pra lá que temos que ir.


16 de maio de 2017

Momentos nada épicos da tomada do Palácio de Inverno

Relato baseado no livro “The Bolsheviks Come to Power” (“Os Bolcheviques Tomam o Poder”) de Alexander Rabinowitch, ainda sem tradução.

O crepúsculo se aproximava e o Palácio de Inverno ainda não estava nas mãos bolcheviques. Uma série de pequenas dificuldades causaram preocupação na época. “Hoje, parecem quase cômicas”, diz o autor.

Ficou combinado que uma lanterna vermelha seria colocada no topo do mastro da Fortaleza Pedro e Paulo para sinalizar o início da ofensiva final contra o Palácio de Inverno. Mas quando chegou o momento, ninguém conseguia encontrar uma lanterna vermelha. Quando finalmente acharam uma, não conseguiam fixá-la no mastro para que pudesse ser vista.

Ao mesmo tempo, os revolucionários que cercavam o Palácio faziam tudo para “evitar uma sangrenta batalha”. “Nos esforçamos para assegurar que eles se rendessem diante de nosso poderio revolucionário. Por isso, nos recusamos a abrir fogo, dando a nossa arma mais forte, a luta de classes, uma oportunidade de fazer efeito dentro do palácio", relatou um participante.

Nesse clima, houve duas tentativas de convencer os ocupantes do palácio a sair pacificamente. Em vão. Às 18h30, um ultimato: “Devem capitular em vinte minutos”. Nada.

Outro ultimato: “Saiam todos às 19:10h ou abriremos fogo”. Simplesmente ignorado. A resposta dos revolucionários? “Mais dez minutos, nem um minuto a mais”. Nada, novamente.

Enquanto isso, em uma pequena sala no quartel-general dos revolucionários, Lênin andava em círculos “como um leão em sua jaula”. “Precisamos tomar o Palácio de Inverno a qualquer custo", gritava, furioso.

O final da história, todos sabem. Mas, certamente, Lênin só não perdeu mais cabelos naquela noite porque já não os tinha sobrando.

Leia também: A informalidade do Partido Bolchevique

15 de maio de 2017

O racismo amassado entre os dentes

“Eu sei quando maio começa, porque todo mundo quer saber do povo negro”, diz Flávia Oliveira, em sua coluna no Globo de 11/05. “É o mês da abolição e todo mundo quer debater o racismo”, afirma a jornalista antes de enfileirar mais estatísticas demonstrando o cruel racismo brasileiro que grande parte do País teima em não reconhecer.

E estatísticas também são parte importante de um dos espetáculos de Marcelino Freire em cartaz no Sesc Copacabana. Trata-se de “Contos Negreiros do Brasil”, que junto com “Um Sol de Muito Tempo” e “Balé Ralé” formam a ocupação “Palavra Amassada Entre Os Dentes”, que homenageia o escritor pernambucano.

A exposição dos números fica por conta do sociólogo e filósofo Rodrigo França, acompanhada das ótimas interpretações de Li Borges e Milton Filho. A direção é de Fernando Philbert.

“Contos Negreiros do Brasil” é o nome de um livro de Freire. Na introdução da obra, o jornalista Xico Sá afirma que o autor:

...escreve como quem pisa no massapê, chão de barro negro, como a fala preta amassada entre os dentes, no terreiro da sintaxe, dos diminutivos dobrados nas voltas da língua...

As estatísticas pela milésima vez confirmam a violência de todos os tipos que desaba sobre a população preta e não branca há séculos. São dados que muito raramente apresentam alguma melhora. Mesmo assim, não despertam mais que algumas palavras de lamento passageiro, murmuradas por grande mídia e governantes. Exceções como Flávia Oliveira só confirmam a regra.

Por enquanto, toda essa injustiça continua a ser remoída apenas entre os dentes. Até quando, não se sabe.

11 de maio de 2017

Como é ser um morcego?

Em meio ao crescente debate sobre inteligência artificial, alguns trechos do livro “Homo Deus”, de Yuval Harari:  

Um dos mais importantes artigos sobre a filosofia da mente intitula-se “Como é ser um morcego?”. Nesse artigo de 1974, o filósofo Thomas Nagel assinala que a mente de um Sapiens não é capaz de conceber o mundo subjetivo de um morcego. Podemos escrever todos os algoritmos que quisermos sobre o corpo do morcego, seus sistemas de ecolocalização e seus neurônios, mas isso não vai nos explicar como é sentir-se um morcego. Como ele se sente ao localizar por intermédio do eco uma mariposa que bate suas asas?

(...)

Um morcego poderia estabelecer a diferença entre uma espécie saborosa de mariposa e uma espécie de mariposa venenosa a partir dos diferentes ecos que retornam de suas asas esguias.

(...)

Assim como o Sapiens não é capaz de compreender como é ser um morcego, temos dificuldade semelhante em compreender o que é se sentir uma baleia, um tigre ou um pelicano.

(...)

Baleias também podem ter experiências musicais espantosas que nem mesmo Bach e Mozart poderiam conceber (...). Mas será que qualquer humano seria capaz de compreender essas experiências musicais e perceber a diferença entre uma baleia Beethoven e uma baleia Justin Bieber?

Nada disso deveria nos surpreender. Sapiens não governam o mundo por terem emoções mais profundas ou experiências musicais mais complexas do que as de outros animais. Podemos ser inferiores a baleias, morcegos, tigres e pelicanos, ao menos em alguns domínios emocionais e empíricos.

Ou seja, não há artifício inteligente que dê conta de nossa vasta ignorância.

Leia também: Possíveis intimidades entre o sexo e a morte

10 de maio de 2017

Possíveis intimidades entre o sexo e a morte

Sexo sai caro. Requer laboriosas programações genéticas para a ligação de cantares e danças, para produzir feromonas sexuais, para desenvolver armações heroicas utilizadas apenas para derrotar rivais, para estabelecer peças de engrenagem, movimentos ritmados e um entusiasmo mútuo pelo sexo.

O trecho acima é do livro “Sombras de antepassados esquecidos”, de Carl Sagan e Ann Druyan. Os autores, no entanto, defendem o sexo como um investimento que vale a pena. Não fosse pela reprodução sexuada, seríamos como as paramécias. Este microrganismo unicelular e assexuado tem milhões de anos, mas seus últimos exemplares são idênticos aos primeiros.

“Uma única bactéria reproduzindo-se duas vezes por hora deixará um milhão de gerações sucessivas durante o nosso tempo de vida”. Todas iguais. Portanto, estaríamos falando de espécies que desfrutam de uma certa imortalidade, afirmam os autores.

É verdade que a reprodução sexuada dá trabalho, mas ela “rejuvenesce o DNA, revigora a geração seguinte”. Permite a diversidade e as mutações que dão origem a espécies mais complexas. Além disso, deu origem ao indivíduo, resultado singular da união de outros indivíduos.

Por outro lado:

Há bilhões de anos foi estabelecido um acordo: os prazeres do sexo em troca da perda da imortalidade pessoal. Sexo e morte: não é possível ter o primeiro sem ter a última.

Pois é, se para o poeta o amor é infinito enquanto dure, a ciência, de seu modo nada romântico, também pode chegar a conclusões semelhantes em relação ao sexo. Mas, talvez, seja apenas uma forma bem diferente de abordar o conflito freudiano entre Eros e Thanatos.

Leia também: Sobre generosidade e egoísmo

9 de maio de 2017

A informalidade do Partido Bolchevique

Mais uma contribuição mostra como é falsa a imagem do partido que liderou a Revolução Russa como uma máquina inflexível e militarizada. São trechos da biografia de Lênin escrita por Tony Cliff, ainda sem tradução do inglês.

Segundo o autor, em 10 de outubro de 1917, o Comitê Central bolchevique criou um Comitê Político para liderar a luta nos dias que viriam composto por sete membros. Entre eles, Lenin, Trotsky e Stalin.

No entanto, o órgão cuja tarefa era guiar a insurreição não se encontrou uma única vez. Aparentemente, esqueceram a resolução.

Em 16 de outubro, foi criado um Centro Militar Revolucionário, que jamais se reuniu e nunca mais apareceu nos registros partidários.

Na realidade, essa falta de formalismo era absolutamente vital para o funcionamento efetivo do partido como um corpo revolucionário, afirma Cliff.

Uma estrutura de partido super-formal, diz o texto, se chocaria inevitavelmente com duas características básicas do movimento revolucionário: a desigualdade nos níveis de consciência, militância e dedicação das diferentes partes de sua organização; E o fato de que os membros que desempenham um importante papel de vanguarda em determinada fase da luta podem ficar para trás em outra.

A verdade, diz Cliff, é que um partido revolucionário não nasce pronto para a revolução. Ele é moldado, transformado no processo da luta revolucionária e, sobretudo, na própria revolução.

Ao mesmo tempo, o partido não era uma entidade “desencarnada”, conclui o autor. As ideias do bolchevismo estavam representadas em milhares de militantes proletários forjados durante anos de luta. Só assim foi possível aos bolcheviques traduzir suas palavras em ações e conduzir uma revolução bem-sucedida.

Leia também: Alexandra Kollontai e o amor que algema

5 de maio de 2017

Sobre generosidade e egoísmo

No livro “Sombras de antepassados esquecidos”, Carl Sagan e Ann Druyan especulam sobre uma possível predisposição genética ao altruísmo. Segundo alguns teóricos, quem ajuda ou salva seu semelhante estaria apenas protegendo os genes de sua espécie.

Mas como explicar que cães arrisquem a vida para salvar pessoas? Golfinhos já foram vistos ajudando banhistas “prestes a se afogar empurrando-os em direção à praia”. Será o golfinho incapaz de distinguir uma pessoa em perigo de um filhote de sua espécie? Altamente improvável.

Bebês humanos abandonados ou perdidos são criados por lobos. Motoristas desviam para não atropelar um cão, mesmo que isso ponha em risco a vida dos filhos que vão no banco traseiro.

“Tais exemplos de coragem e dedicação para com outra espécie podem advir de uma seleção de parentesco mal direcionada, mas acontecem mesmo e salvam vidas”, dizem os autores.

E concluem:

O egoísmo e o altruísmo inabaláveis são, parece-nos, as extremidades mal ajustadas de um continuum; a posição intermédia ótima varia segundo as circunstâncias e a seleção inibe os extremos. E, já que os genes têm tanta dificuldade em descobrir por si mesmos qual o meio-termo ótimo para cada circunstância nova que surge, não seria vantajoso para eles se delegassem a autoridade? Para isso, uma vez mais, são necessários cérebros.

Ou seja, quando a atividade cerebral alcança certa complexidade, seus portadores não precisam ser escravos de seus genes, seja em favor da solidariedade ou do egoísmo. Trata-se de escolhas. No caso da humanidade, construídas social e historicamente. A responsabilidade é nossa. Não dos cromossomos.

Aqueles que ainda apresentam alguma atividade cerebral significativa, entenderão.

Leia também: Na pré-história, faça amor, não faça guerra

4 de maio de 2017

Muito mais que cem anos de solidão

O lendário livro “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, está completando meio século. Para muitos, a obra inaugurou o realismo mágico. Um estilo artístico que apresenta elementos fantasiosos como parte do cotidiano.

Apesar disso, uma das passagens menos imaginárias e marcantes do romance refere-se a um massacre ocorrido em Aracataca, cidade colombiana onde nasceu o autor.

Era dezembro de 1928 e os trabalhadores da United Fruit haviam entrado em greve. A poderosa multinacional americana não podia admitir tamanha ousadia. Muitos dos grevistas foram fuzilados pelo exército. O total de mortos nunca foi esclarecido, mas há quem diga que pode ter chegado a cinco mil.

O livro descreve a cena deste modo:

Estavam encurralados, girando num torvelinho gigantesco que pouco a pouco se reduzia ao seu epicentro, porque os seus bordos iam sendo sistematicamente recortados em círculo, como descascando uma cebola, pela tesoura insaciável e metódica da metralha.

O único sobrevivente é o personagem José Arcadio Segundo, que, na confusão, conseguiu fugir. Ao voltar mais tarde, fica surpreso quando descobre que ninguém sabia do massacre. Tudo o que lhe dizem é: “Em Macondo não aconteceu nada, nem está acontecendo nem acontecerá nunca. É um povoado feliz.”

No livro, Macondo representa Aracataca. Mas na vida real, o pequeno povoado simboliza muitos outros lugares pelo mundo. Um mundo onde o poder é exercido de modo cada vez mais solitário pelo grande capital, enquanto vai multiplicando muitas vezes o número de suas vítimas. 

Não à toa, Garcia Márquez costumava dizer: “Não há uma linha nos meus livros que não seja realidade”.

3 de maio de 2017

Populus, o cão de Belchior

Era 1977. Belchior lançava o LP “Coração Selvagem”. A ditadura já havia matado o jornalista Vladimir Herzog e ainda mataria o operário Santo Dias. Entre as músicas do álbum, uma que falava de um cão. O cantor cearense chamava o bicho de “Populus”.  

Populus, meu cão...
O escravo, indiferente, que trabalha

Naquela época, se dizia que era preciso fazer crescer o bolo econômico primeiro, para só depois reparti-lo. Mas de certo mesmo, Populus:

...por presente, tem migalhas sobre o chão.

E não apenas ele:

Primeiro, foi seu pai,
segundo, seu irmão;
terceiro, agora, é ele... agora é ele,
de geração, em geração, em geração.

“No congresso do medo internacional”, diz a canção, referindo-se a um poema de Carlos Drummond, ouve-se “o segredo do enredo final sobre Populus, meu cão”. Em “documento oficial” e em “testamento especial”, “a morte, sem razão”. De Populus, o cão.

Um desfecho que, em meio a “delírios sanguíneos” e “espumas nos teus lábios”, parece mesmo muito “em vão”.

Populus, está “roto no esgoto do porão”. Lá onde governo e capital jogavam os que ousavam desafiá-los. E destes restavam apenas “seu olhar de quase gente” e “as fileiras dos seus dentes”.

A música agoniza em direção a um pedido de ajuda final, em sílabas alongadas: “SOS é só, SOS é só”.

Populus quer dizer “povo” em latim. O que torna tudo ainda mais compreensível. E atual.

Mas como diz aquele poema de Drummond citado por Belchior: “Provisoriamente não cantaremos o amor”. Ele está refugiado “mais abaixo dos subterrâneos”.

Leia também: Em Mariana, poesia que dói

2 de maio de 2017

Alexandra Kollontai e o amor que algema

Ela foi a primeira mulher a integrar o primeiro escalão de um governo. O governo bolchevique nos anos de 1917-1918. Também foi a primeira mulher a ser nomeada embaixadora. Estamos falando de Alexandra Kollontai.

Mas muito anos antes de se tornar uma grande liderança da Revolução Russa, ela já era incansável militante da luta pelos direitos e pela liberdade das mulheres no movimento socialista. Sempre enfrentando resistências no interior do Partido Bolchevique e da esquerda em geral.

Mas em sua autobiografia chama a atenção um outro tipo de dificuldade:

...é preciso dizer que eu ainda estou muito longe de ser o tipo de mulher positivamente nova. (...) ainda pertenço à geração de mulheres que cresceu num momento crítico da História. O amor e suas muitas decepções, com suas tragédias e eternas reclamações pela perfeita felicidade, ainda cumpriram um papel muito importante em minha vida. Um papel demasiado importante!

Alexandra refere-se às inúmeras vezes em que “o amor transformava-se em algema”. Esses momentos surgiam quando seu companheiro passava a ver nela:

...somente o elemento feminino, o qual tentava transformar em uma conveniente caixa de ressonância do seu próprio ego. E dessa forma, repetidas vezes chegou o inevitável momento em que tive que me desembaraçar das correntes da comunidade com um coração dolorido, mas com uma vontade soberana e não influenciada.

Exatamente por isso, Alexandra nunca deixou de lutar por “uma nova moral sexual”, como “alvo mais elevado” de sua atividade e de sua vida. Uma luta que mostra que até as maiores revoluções representam apenas os primeiros passos em qualquer processo de verdadeira libertação humana.

Leia também: Em outubro de 1917, Petrogrado é uma festa

1 de maio de 2017

Em outubro de 1917, Petrogrado é uma festa

Era 8 de novembro de 1917 no calendário russo, 26 de outubro na contagem ocidental. No dia seguinte à tomada do poder pelos sovietes, eis o que diz o livro “Os dez dias que abalaram o mundo” sobre Petrogrado:

...os bondes circulavam, as lojas e os restaurantes estavam abertos, os teatros funcionavam, um cartaz chamava para uma exposição de pinturas… Toda a complexa rotina da vida comum — monótona mesmo em tempos de guerra — prosseguia normalmente.

Ou seja, enquanto acontecia um dos maiores eventos da história moderna, havia gente se divertindo na noite de Petrogrado.

Seria isso um sinal de que a Revolução de Outubro foi apenas um golpe de estado? De uma obra de minoria ressentida? De forma alguma.

O fato é que há momentos em que a injustiça social é tão grande que cega os de cima, mesmo sendo escandalosamente evidente para os de baixo. E o volume alto da música, o ruído dos pratos e copos, abafam o som da revolta que se aproxima perigosamente das folias das elites.

Não demorou muito para que o povo russo iniciasse sua própria festa.

Em 2013, um baile de debutantes marcou a volta das diversões típicas da época do tzar. Foi em Londres e reuniu sessenta adolescentes de Rússia, Estados Unidos, Malta e Grã-Bretanha. Estavam presentes descendentes da família Romanoff, expulsa do poder pelas revoluções de 1917.

Há quem enxergue no atual período paralelos com o início do século passado. Revoluções não parecem estar no horizonte. Mas as classes dominantes continuam a se deixar cegar e ensurdecer por farras monumentais feitas às custas de muita injustiça social.