Doses maiores

9 de dezembro de 2013

A família Marx festeja o Natal

A família Marx também era chegada a uma festinha de Natal. É o que Mary Gabriel revela em “Amor e Capital”.

Questionado pelos filhos sobre as origens da festa, Marx dava sua versão. Tratava-se do nascimento de um pobre carpinteiro que seria assassinado pelos ricos na idade adulta.

Mas não eram as convicções materialistas dos Marx que os impedia de participar do clima festivo. Era a costumeira penúria, mesmo. É verdade que já se tratava de uma data tomada pela lógica da mercadoria. Mas Jenny e Karl sabiam reconhecer e respeitar o apelo natalino sobre suas crianças.

Em 1849, chegando a Londres, os Marx se depararam com as vitrines cheias de brinquedos, tecidos e joias. E os empórios exibiam muitas delícias e guloseimas.

Mas somente em 1853, a família teve condições financeiras para comemorar o Natal. Contando com a ajuda de amigos, a decoração teve até árvore. Entre os presentes distribuídos às crianças, bonecas, um tambor, panelinhas e armas de brinquedo.   

Para os adultos, muito bebida e comida. Um vinho trazido por Engels só foi revelar sua péssima qualidade no dia seguinte. A ressaca atingiu até as crianças.

De fato, Marx dizia tolerar o Natal porque “nos ensinou a cultuar uma criança”. E ele realmente as adorava. Queria-as sempre por perto e não aceitava separá-las dos adultos. Não porque elas tivessem o que aprender com eles, dizia, mas exatamente o contrário.

A figura do Papai Noel só se tornaria conhecida muito tempo depois. Se vivesse no século 20, é possível que Marx aceitasse, pelo menos, usar a toca vermelha do velhinho para agradar seus filhos. 

 Felizes festejos e até 2014!

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6 de dezembro de 2013

Engels, o anjo torto de Marx

“Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida”. Os versos de Drummond serviriam para “Carlos” Marx. Seu anjo torto foi Engels, sobrenome que lembra “anjo” em alemão.

Grande personagem do livro “Amor e Capital”, de Mary Gabriel, Engels administrou as empresas de sua família por muitos anos. Odiava o papel de patrão, mas tinha um ótimo motivo. Garantir a Marx os meios materiais para atuar politicamente e elaborar sua teoria.

Ao lado de Jenny, foi grande responsável pela existência de “O Capital”. Sem o apoio dos dois, Marx jamais teria conseguido concluir grande parte de sua maior obra.

Mortos Jenny e Marx, Engels assumiu os cuidados com suas filhas, sempre em apuros com seus maridos irresponsáveis. Sem filhos, deixou a maior parte de sua fortuna para elas e para os netos de Marx.

Mas nem tudo se resumia a dificuldades. Marx e seu anjo escreveram obras geniais juntos, bebiam aos montes, compravam brigas homéricas.

Engels também era torto no sentido boêmio da palavra. Muito bom de copo e, na juventude, grande conquistador de corações.

O anjo gostava de usar a espada. Adorava lutar nas barricadas. Por isso, as meninas Marx o apelidaram de General.

Foi feliz em duas longas uniões amorosas. Em ambas, com operárias analfabetas, comprometidas com a luta socialista.

Engels era um teórico brilhante. Sua obra, tão importante quanto a de seu protegido.

A seu enterro compareceram novos anjos tortos, que ele ajudou a formar. Uma legião que se tornaria o pesadelo dos poderosos nas décadas seguintes. Entre eles, Vladimir Lênin.

Leia também: A luz de Jenny à sombra de Marx

5 de dezembro de 2013

A luz de Jenny à sombra de Marx

Em “A Sagrada Família”, Marx disse que o progresso da mulher e de sua liberdade mostraria o grau em que “a natureza humana” é capaz de triunfar sobre a bestialidade. Se Jenny Marx já vivesse em uma sociedade capaz desse tipo de avanço, certamente não estaria reduzida ao papel de esposa do genial revolucionário alemão.

De grande capacidade intelectual, Jenny não apenas transcrevia os ilegíveis garranchos de Marx, como ajudava a corrigir possíveis erros teóricos. Quando possível, cuidava da correspondência com militantes da Internacional Socialista. Só não fez mais pela teoria revolucionária porque as terríveis restrições econômicas a empurraram para os afazeres domésticos.

Recaiu principalmente sobre ela os muitos sacrifícios que implicavam ser a esposa de um teórico tão genial quanto genioso. Tão inteligente como incapaz de garantir o próprio sustento. Mas Jenny não se sacrificou apenas por amor ao companheiro. Ela também era apaixonada pela causa socialista. E sabia que a obra do marido seria fundamental para a luta por igualdade e justiça social.

Nada desculpa os muitos sofrimentos que Marx impôs a Jenny. Incluindo um filho com a empregada, cuja paternidade foi assumida por Engels. Mas ela jamais o abandonou porque o amor jamais os deixou. Entre si, pelas filhas e pela revolução. Quando ela morreu, Engels previu que Marx logo sucumbiria. De fato, quinze meses depois, ele morreria solitário e triste.

O livro “Amor e Capital”, de Mary Gabriel, faz um pouco de justiça a esta grande mulher. Apesar de viver sob a imponente sombra de seu companheiro, Jenny tinha tanta luz própria quanto gigantes como Rosa Luxemburgo e Clara Zetkin.

Leia também: Marx e seus genros imprestáveis

4 de dezembro de 2013

Marx e seus genros imprestáveis

Certa vez, Karl Marx escreveu:

Eu não acho que alguém que já tenha escrito sobre dinheiro tenha sofrido tanto com a falta dele. A maioria dos que escreveram sobre o assunto mantiveram relações melhores com o objeto de suas investigações.

De fato, entre 1850 e 1860, Marx e sua família só deixaram de comer o pão que o diabo amassou quando até este lhes faltou. A pobreza era tanta que quatro dos sete filhos que Jenny Marx gerou morreram ainda pequenos. Apenas três meninas sobreviveram.

A situação só não era pior graças à proteção infalível de Friedrich Engels. O parceiro que acompanhou Marx por toda a vida nas lutas e na elaboração teórica podia ajudar. Afinal, administrava as lucrativas empresas de sua família.

Em uma de suas inúmeras cartas pedindo dinheiro a Engels, Marx admite que suas despesas poderiam ser menores, caso sua família levasse uma vida mais “proletária”. Mas isso impediria que suas filhas pudessem se casar com “bons partidos”.

O maior medo de Marx era ver suas filhas casadas com alguém como ele. Cheio de fervor revolucionário, inteligência e coragem, mas incapaz de sustentar a própria família. Foi em vão. As três acabaram se envolvendo com militantes revolucionários.

Nenhum deles chegava aos pés do brilhantismo de Marx. Todos tinham idêntica incompetência para ganhar dinheiro. E igualmente fizeram suas esposas sofrerem, para desgosto de um pai que adorava as filhas.

Tudo isso está no livro “Amor e Capital - a Saga Familiar de Karl Marx”, de Mary Gabriel, recentemente lançado no Brasil. Voltaremos a falar dele, das muitas aflições e poucas alegrias da família Marx.

Leia também: Marx apaixonado

3 de dezembro de 2013

Os “black blocs” suburbanos e o racismo sem máscara

Uma das restrições determinadas pelo Estado de Sítio é o direito a reuniões. Basta juntar mais de três para ser alvo da repressão estatal.

Em 02/12, Douglas Belchior publicou em seu blog “Shopping Vitória: corpos negros no lugar errado”. O relato é sobre a repentina presença de muitos jovens negros em um centro comercial da capital potiguar.

Eles vinham de uma festa funk que havia sido interrompida pela polícia. Para fugir à violência fardada, vários acabaram entrando no shopping. Foi o bastante para que consumidores e lojistas chamassem a polícia alegando a ocorrência de um “arrastão”.

Os “intrusos” foram obrigados a tirar as camisas e sair do local de mãos na cabeça e em fila indiana. Tudo isso sob forte escolta policial. E debaixo do aplauso dos frequentadores do shopping.

Em 20/11, Dia da Consciência Negra, um suposto arrastão criminoso foi reprimido por um violento arrastão policial numa praia da zona sul carioca. Logo depois, ficou decidido que ônibus vindos de bairros pobres seriam revistados.

A medida foi comentada pela antropóloga Julia O’Donnel na edição do Globo de 01/12. Segundo ela, a revista de ônibus “caberia perfeitamente nos jornais que pesquisei em 1922”.

Não estamos sob Estado de Sítio. Nem em 1922. Mas nada disso conta para quem tem a pele escura. Ajuntamentos de negros distantes de seus precários locais de moradia continuam a ser considerados perigosos.

Eles não precisam protestar, quebrar vitrines ou esconder os rostos para serem tratados com tanta ou mais violência que os black blocs. E, nesses momentos, o racismo estatal e a discriminação social também deixam de usar suas máscaras.

2 de dezembro de 2013

A casa das estrelas e as fábricas de zumbis

"Ainda pequeno tive que interromper minha educação para ir à escola", disse George Bernard Shaw (1856-1950). O famoso dramaturgo irlandês é autor de várias frases espirituosas como esta. Mas talvez jamais as produzisse se dependesse da “pedagogia” do século 21.

É que “zumbis” não costumam ser muito criativos. E é este tipo de aluno que os “modernos” meios didáticos estão gerando. O mais novo ingrediente dessa produção é a ritalina. Trata-se de substância receitada por médicos para tornar cérebros infantis e adolescentes mais concentrados nos estudos.

É o que revela o artigo “Ritalina, a droga legal que ameaça o futuro”, de Roberto Amado, publicado no blog Diário do Centro do Mundo, em 25/11. Segundo o texto, “com efeito comparável ao da cocaína, a droga é receitada a crianças questionadoras e livres”. Sob seu efeito, a criança “para de viajar, de questionar...”.

Mas a droga é só mais um produto da ditadura da competição capitalista. A mesma que transforma escolas em fábricas de “robozinhos sem emoções”.

A frase de Shaw está na introdução do livro "Casa das estrelas: o universo contado pelas crianças", de Javier Naranjo. Recém-lançada no Brasil, a obra colombiana contém definições de crianças pequenas para várias palavras. O nome do livro, por exemplo, surgiu da definição de um garoto para a palavra Universo.

O livro mostra elaborações criativas, que ganham sentidos poéticos e adivinham o sentido profundo de certos conceitos. É o caso da definição de Igreja: “Onde as pessoas vão perdoar Deus”. Ou de Solidão: “Uma novela de televisão”. Ou ainda de Professor: “É uma pessoa que não se cansa de copiar”.

29 de novembro de 2013

Metrópoles, máquinas capitalistas de caos

O geógrafo marxista David Harvey esteve no Brasil. Fez palestras e concedeu entrevistas. Em todas elas apontou as grandes cidades como lugar da desigualdade social e do caos. A raiz desse problema ele apontou resumidamente em excelente entrevista ao Canal Ibase:

O interesse que o capital tem na construção da cidade é semelhante à lógica de uma empresa que visa ao lucro. Isso foi um aspecto importante no surgimento do capitalismo. E continua a ser.

Não custa lembrar uma passagem do Manifesto Comunista, de Marx e Engels:

A burguesia submeteu o campo ao domínio da cidade. Criou cidades imensas, aumentou enormemente sua população em comparação com a do campo, arrancando uma grande parte da população do isolamento da vida rural.

Os patrões precisavam dos trabalhadores aglomerados. À disposição para serem explorados em grandes unidades fabris. Além disso, a elevada competição barateava o preço de sua força de trabalho. E o consumo ganhava escala, turbinando os lucros.

Mais de um século e meio depois, essas determinações econômicas transformaram a vida urbana em um inferno. A maior vítima, claro, é a enorme maioria pobre. Mas dos engarrafamentos quilométricos só escapa uma minoria a bordo de helicópteros. Não à toa, as manifestações de junho tiveram como estopim a questão do transporte público.

Contra a exploração, o Manifesto chamava os trabalhadores a se unir e agir. Contra o cenário urbano apocalíptico, Harvey espera algo parecido: “O conselho que dou a todos é ir para as ruas o mais possível, enfrentar a desigualdade social e a degradação ambiental”.

As causas das jornadas de junho continuam todas aí. Há uns 200 anos.

Leia também: A duvidosa qualidade dos números sobre qualidade municipal

27 de novembro de 2013

Tucanos e petistas se unem em defesa dos bancos

Na campanha presidencial de 89, Fernando Collor dizia que seu adversário, Lula, confiscaria a caderneta de poupança se fosse eleito. Mal tomou posse, foi ele que meteu a mão nas economias da população.

Mas Collor apenas repetiu alguns de seus antecessores. Desde o Plano Cruzado, em 1986, até o Plano Real, houve enormes perdas para salários e poupança. Cada um desses planos mirava na inflação e acertava nos bolsos de milhões de trabalhadores. Contra tais perdas, houve muitas greves e ações judiciais.

Muitos anos depois, chegam ao Supremo Tribunal Federal os pedidos pela concessão da correção dessas perdas. Foi o bastante para que uma Santa Aliança se reunisse para barrar uma improvável decisão favorável aos poupadores.

Vinte e três “personalidades” assinaram documento contrário ao pedido. Entre eles, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Mas o atual ministro da Fazenda do governo petista também é contra. Alegam que uma decisão favorável aos poupadores poderia trazer perdas de quase R$ 150 bilhões para o governo e o sistema financeiro.

As entidades que representam os reclamantes, no entanto, calculam um valor entre R$ 8 e R$ 18 bilhões. O que equivale a um ano de lucros só do Itaú, por exemplo. E representa menos de 1% de pagamentos de juros da dívida pública.

Mas petistas e tucanos têm suas razões. Eles são os maiores beneficiários das gordas doações eleitorais dos bancos. Precisam agradecer apoio tão generoso.

O PSDB comemora as prisões do “Mensalão”. Os petistas denunciam o “Trensalão” tucano. Mas estão unidos no socorro à banca financeira. Nossa poupança que se lasque.

26 de novembro de 2013

O PT ainda é de esquerda, mas serve ao inimigo

“Cuidado, dizem os petistas, a direita pode voltar”. Sim, pode voltar, dizemos nós, e continuar a fazer o que vocês já vêm fazendo. A piada levanta uma dúvida cada vez mais presente. Afinal, o PT ainda é um partido de esquerda?

Os termos "esquerda" e "direita" apareceram durante a Revolução Francesa, em 1789. Na Assembleia Nacional, os partidários do rei sentavam-se à direita do presidente e os que simpatizavam com a revolução, à sua esquerda.

Desde então, a esquerda passou a ser identificada com as forças que consideram necessário combater a injustiça social e a desigualdade econômica. Aqueles que acreditam em reformas graduais para fazer isso passaram a ser chamados de reformistas. E os que defendem rupturas radicais, revolucionários.

Mas uma das tradições dos revolucionários é apoiar os reformistas nos momentos decisivos. O objetivo é deixar as divergências de lado para priorizar o combate à direita. Em momentos eleitorais, por exemplo. Mas nem sempre esta é a melhor opção.

É cada vez mais comum que os reformistas se unam a setores da classe dominante e sacrifiquem os interesses dos explorados e oprimidos. Nas últimas décadas, em praticamente todo o mundo, governos controlados por eles empenham-se em se mostrar mais conservadores que a própria direita.

Aqui, o PT está à esquerda de um PSDB ou de um DEM. Mas aliou-se a uma enorme parcela da direita e é dela refém. Basta olhar para as vergonhosas concessões que fez. Nada justifica o engavetamento da Reforma Agrária e o retorno das privatizações.

O PT continua sendo de esquerda. Mas aliar-se a ele seria participar de sua submissão à direita.

Leia também: O PT acumula poder, não democracia

COP-19: uma comédia que provoca choro

A última edição da Conferência da ONU sobre Mudança Climática foi a 19ª confissão da incompatibilidade entre capitalismo e sustentabilidade ambiental. Nem as ONGs, sempre tão pacientes com governos que representam os interesses da destruição industrial, aguentaram. Abandonaram o evento pela primeira vez em sua história. Kumi Naidoo, executivo do Greenpeace, explica os motivos:

A COP 19 foi uma farsa. Era para ser sobre o aumento dos cortes das emissões, mas o que vimos foi o oposto – o Japão diminuiu sua meta, a Austrália desistiu de suas políticas climáticas e o Brasil apresentou aumento de 28% no desmatamento. Além disso, os países ricos falharam, não cumpriram suas promessas de disponibilizar financiamento climático de longo prazo.

A grande imprensa, no entanto, destaca “avanços”. Um deles envolveria a Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação de Florestas (REDD). Mas o REDD não passa de mais um mecanismo para negociar poluição no mercado financeiro especulativo.

Outro “avanço” seria a adoção do chamado “Mecanismo de Varsóvia”. Uma espécie de ressarcimento para localidades que tiveram prejuízos com eventos climáticos extremos. Piada. O texto final não impõe obrigações.

Um exemplo de “evento climático extremo” foi o tufão que atingiu as Filipinas durante a COP. Márcio Gomes, correspondente da Globo, fez a cobertura da tragédia que já matou mais de 5 mil. Em entrevista ao Diário Catarinense, ele disse que é terrível ouvir “o choro das crianças à noite”. Mas, disse ainda, “você não tem o que fazer, pois não é só fome ou sede. É medo”.

Medo é o que os governantes do mundo precisariam começar a sentir. Todos.

25 de novembro de 2013

O racismo ganha de goleada, sem jogar

Há 40 anos, um jogo de futebol amador acontece na zona sul de São Paulo. Os times são definidos pela cor da pele. É o Preto X Branco, que envolve moradores do bairro de S. João Clímaco e da favela de Heliópolis. Mas é desta última que costuma sair a grande maioria dos jogadores negros.

Um excelente documentário sobre o evento é “Preto contra Branco”, de Wagner Morales. O filme mostra as contradições que a disputa provoca.

Pra começar, é grande a confusão na hora de separar os jogadores pela cor. A pele mais clara não esconde traços e cabelos de origem africana. Mesmo assim, muitos negros jogam do lado branco. Dificilmente, há casos de jogador branco passando-se por preto.

Um dos jogadores é filho de mãe negra. Para enorme desgosto do pai branco, optou por jogar no lado preto.

No bar, integrantes dos dois times se reúnem para beber e bater papo. O clima é bom até que começam as piadas racistas. Os que se assumem negros não gostam.

No calor do jogo, explodem as ofensas racistas. Mais que isso, alguns brancos lembram aos negros que são os donos do clube onde a partida é realizada. A rivalidade ameaça descambar para a violência física. Mas o samba e a bebida no final da partida parecem ajeitar tudo.

Um jogo desses é perigoso para a ideologia da democracia racial. Não há times “marrons”, “moreninhos”, “escurinhos”. A disputa escancara o que deveria ficar escondido. E envolve justamente o esporte mais popular do País.

Para continuar vencendo o jogo, o racismo brasileiro não pode entrar em campo.

Clique aqui para assistir o documentário de Morales.

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22 de novembro de 2013

A grande imprensa celebra a chibata

Em 20/11, O delegado de polícia Orlando Zaccone publicou no facebook duas imagens. A primeira é uma foto da grande imprensa mostrando policiais reprimindo com cassetetes supostos ladrões em uma praia do Rio de Janeiro. A outra, uma gravura de Jean-Baptiste Debret, em que um escravo é castigado com chibatadas.



Em ambas, tanto quem bate como quem apanha tem a pele escura. Daí o comentário de Zaccone sobre o Dia da Consciência Negra: “Museu de grandes novidades!” O fato de que negros ainda reprimam negros mostra que algumas coisas mudaram para tudo ficar do mesmo jeito.

Mas a referência a Debret chama a atenção para outra questão. O pintor integrava a Missão Artística Francesa que chegou ao Rio de Janeiro em 1816. Ele e outros artistas estrangeiros eram os únicos a retratar situações cotidianas. Seus colegas brasileiros só pintavam belas cenas e cenários.

Um exemplo famoso é o quadro “A Primeira Missa no Brasil”, de Victor Meirelles. Nele, os índios assistem à cerimônia encantados. Como se a religião do europeu finalmente lhes revelasse a verdade sagrada. Nenhuma referência à conversão forçada de que foram vítimas.

Enquanto isso, Debret e seus colegas mostravam indígenas e negros submetidos a trabalhos pesados e cansativos. Vitimados por castigos e maus tratos. O que os pintores brasileiros escondiam com suas belas paisagens e cenas da corte, os estrangeiros mostravam.

Os atuais jornais também gostam de mostrar o cotidiano. Mas quando se trata de retratar a gente pobre e preta, o objetivo é quase sempre justificar a violência com que deve ser tratada. Como nos tempos de Debret, ainda celebram a chibata.

21 de novembro de 2013

É preciso mais participação política, não menos

“‘Privatização de tudo’ gerou protestos, que vão continuar”, disse David Harvey à Folha em 21/11. O geógrafo marxista identifica uma “desilusão generalizada com o processo político”. E prevê “mais explosões de raiva nos próximos anos – no Egito, na Suécia, no Brasil etc”.

No mesmo jornal, em 19/11, Clovis Rossi comenta a vitória no primeiro turno da candidata à presidência do Chile, Michelle Bachelet: “Computando-se a abstenção, que foi superior à metade do eleitorado, tem-se que os 47% de Bachelet reduzem-se a menos de um quarto dos votos possíveis”.

Em 14/11, no Valor, artigo do tucano Alberto Carlos Almeida aponta o consumo como fator determinante nas eleições presidenciais desde 1994. Cita “controle da inflação, desemprego, Bolsa Família, aumento real do salário mínimo” como trunfos dos vencedores. Mas, segundo ele, “a população quer mais. É o nome desse mais querer que por enquanto não sabemos”.

Por fim, citemos o 9º Encontro Nacional de Fé e Política. Entre os participantes, Frei Betto, petista e amigo pessoal de Lula. Ele recebeu muitos aplausos, ao dizer que nos últimos dez anos, o governo do PT promoveu muita inclusão social e “nenhuma inclusão política”.

O significado das jornadas de junho continua um mistério. Mas é possível que o “quero mais” a que se refere Almeida seja a “inclusão política” destacada por Betto. Algo capaz de dar rumo às explosões raivosas e diminuir a apatia eleitoral.

Trata-se de aspiração que o atual sistema político, dominado pelo poder econômico, é incapaz de atender. Tudo indica que precisamos de mais participação política, não de menos. Principalmente, nas ruas, bairros, escolas, universidades, locais de trabalho.

19 de novembro de 2013

O “quinto estado” negro

Um dos quadros mais famosos da luta dos trabalhadores é o “Quarto Estado”, do italiano Giuseppe Pellizza da Volpedo. Pintada em 1898, a obra mostra operários protestando durante uma greve.

O nome da pintura faz referência aos três estados da Revolução Francesa. Nesta época, a sociedade francesa era dividida em três estados: o clero, a nobreza e o povo. Este último era formado tanto por patrões como por trabalhadores. Foi sua união no combate aos outros dois estados que tornou possível a Revolução Francesa.

Mas com o desenvolvimento do capitalismo, aumentaram as contradições entre os membros do terceiro estado. Além de serem explorados por seus patrões, os operários também serviam de bucha de canhão nos conflitos entre eles e a nobreza. Por isso, passaram a lutar por seus próprios direitos, contra uns e outros. Surgia o “quarto estado”. Ou seja, o proletariado.


A obra de Pelizza recebeu várias versões e adaptações. Mas há uma que chama a atenção. Trata-se de uma foto de Settimio Benedusi. A imagem imita o “Quarto Estado”, mas mostra cortadores de cana negros no lugar dos operários europeus.

A foto nos lembra que a população negra forma um enorme contingente do proletariado mundial. Uma parcela que sofre a dominação capitalista em dobro. Pela exploração econômica e pela opressão racista. Algo que setores da própria classe trabalhadora costumam desprezar.

O fato é que a burguesia conseguiu transformar os trabalhadores negros em uma espécie de “quinto estado”. Na verdade, eles são parte importante e poderosa do proletariado mundial. Sem a força de suas lutas, o "quarto estado" jamais chegará ao socialismo e à liberdade.

18 de novembro de 2013

Para negros e pobres, pena de morte é exceção tornada regra

No início de novembro, vários artistas e movimentos sociais lançaram um manifesto em vídeo contra violência policial em São Paulo. Entre eles, os rappers Emicida, GOG, KL Jay e Flora Matos e as entidades “Mães de Maio”, “Círculo Palmarino” e “Marcha Mundial de Mulheres”.

Eles afirmam que “as vítimas de violência no Brasil tem cor e endereço. São majoritariamente negros, jovens, de periferia”. A conclusão é confirmada por diversas estatísticas que relacionam a cor da pele e a classe social a mortes violentas.

O peso da ação policial nesses números é inegável. E a grande justificativa para tantas mortes é a resistência à prisão registrada nos chamados “autos de resistência”. Na verdade, um julgamento relâmpago, em que suspeitos são condenados à morte imediata.

O manifesto lembra que:

Em 2011, o número de mortes classificadas por autos de resistência apenas no Rio e em São Paulo foi 42,16% maior do que todas as execuções promovidas por 20 países em que há pena de morte.

Dizem que a legislação brasileira não prevê a aplicação da pena de morte. Não é bem assim. Realmente, ela aparece entre as punições legais não permitidas pelo artigo 5 da Constituição. Mas há uma exceção. “Salvo em caso de guerra declarada”.

O manifesto defende a desmilitarização da polícia. Mas também lembra que a corporação “privilegia e protege a mesma elite que a criou há 400 anos”. Portanto, apenas a desmilitarização dificilmente resolverá o problema.

O fato é que a polícia nunca declarou a guerra que trava há séculos contra negros e pobres, mas adotou a exceção constitucional como regra.

14 de novembro de 2013

“Bom Senso F.C.” e espírito esportivo

As manifestações chegaram ao futebol. Em todas as partidas de 14/11 do Campeonato Brasileiro, os jogadores organizaram manifestações contra a CBF. Basicamente, eles querem um calendário mais democrático. O zagueiro do Corinthians, Paulo André, é uma das lideranças do movimento. Em entrevista ao canal ESPN Brasil, ele esclareceu:

Nós queremos um aumento do número de jogos para os times pequenos. Eles jogam três, quatro meses. Nós estamos falando de 500 clubes profissionais e mais de 15 mil atletas, que têm uma vida quase de boia fria. E são estes caras que a gente tá defendendo. Não só a elite. Não só os caras que ganham bem.

Se suas reivindicações não forem atendidas, os jogadores podem iniciar uma greve que atrasaria o início do campeonato de 2014.

Os principais alvos do movimento são a CBF e as emissoras de TV. Principalmente, a Globo, que manda no calendário dos jogos. Mas há outros monopólios empresariais movimentando milhões em torno do futebol. Entre estes, os próprios clubes grandes. As enormes somas em dinheiro são destinadas somente a uma pequena minoria de empresas, clubes e jogadores.

Os atletas batizaram seu movimento de “Bom Senso F.C”. Para Gramsci, o senso comum é uma maçaroca de noções confusas e contraditórias usada para justificar a dominação de classe. O “bom senso” resultaria da revelação das racionalidades opressoras por trás dessa confusão. Mas deve ser apenas o ponto de partida para a formação de um novo senso comum, baseado em valores libertários e igualitários. Algo muito próximo do que se costuma chamar de “espírito esportivo”.

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13 de novembro de 2013

Fukushima e as vítimas da radiação capitalista

Em março de 2011, um imenso tsunami atingiu a usina nuclear de Fukushima, no Japão.  O desastre causou um vazamento radioativo que levou à evacuação de 150 mil pessoas da região.

Na época um tema comum das conversas cotidianas foi a reação do povo japonês à catástrofe. As notícias que chegavam diziam que mesmo em meio ao caos causado pelo acidente, não havia noticias de saques, roubos, tumultos. Um “povo ordeiro, disciplinado, instruído”, diziam muitos.

Passados mais de dois anos, o que ficamos sabendo sobre Fukushima não é tão animador. É o que mostra reportagem publicada em 11/11 pelo Valor. Em “Yakuza participa da limpeza de Fukushima”, Antoni Slodkowski e Mari Saito revelam fatos assustadores. A Yakuza que aparece no título é uma organização mafiosa. Mas seus membros não são os únicos a cometer crimes.

Segundo a matéria:

A indústria nuclear do Japão recorre a mão de obra barata desde que suas primeiras usinas foram inauguradas nos anos 70. Por anos, a indústria valeu-se de trabalhadores itinerantes, conhecidos como "ciganos nucleares", de Sanya, na vizinhança de Tóquio, e de Kamagasaki, em Osaka, áreas conhecidas pelo grande número de homens sem-teto.

O desastre de Fukushima só piorou a situação. A matéria mostra que os trabalhos de descontaminação são feitos por uma ampla rede de empresas subcontratadas. Algumas delas ligadas ao crime organizado. Muitas utilizando trabalhadores mal pagos que são expostos ao veneno radiativo.

A solidariedade e a disciplina podem até ser características do povo japonês. Mas não são suficientes para evitar a universal capacidade do Capital para fazer dinheiro com a desgraça humana. Pior que qualquer radiação.

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12 de novembro de 2013

Juizados especiais podem ser tribunais de exceção

Em 07/11, o ministro José Eduardo Cardozo anunciou a criação de uma “força-tarefa para apurar e julgar casos de violência em manifestações de rua”. A medida prevê a criação de novos órgãos, semelhantes aos juizados especiais criados em estádios de futebol, diz o governo.

Em primeiro lugar, por que a violência a ser enquadrada judicialmente é apenas a dos manifestantes? Por que não há referência às ações criminosas da PM? Entre elas, o uso de munição letal, as prisões arbitrárias e os linchamentos promovidos por soldados contra manifestantes?

Em segundo lugar, dizer que os juizados se inspiram nas experiências com torcidas de futebol não traz nenhuma tranquilidade. Este modelo foi utilizado na Copa da África do Sul e o resultado foram métodos de tribunais de exceção. Pessoas condenadas a anos de cadeia da noite para o dia. Todas pobres, claro.

Basicamente, tribunais de exceção são cortes judiciais que não permitem o direito de defesa, usam provas suspeitas e condenam de forma ligeira e perigosa. São os preferidos pelas ditaduras. Certamente é por isso que a medida anunciada pelo governo fez a alegria dos comandantes da PM e de seus cúmplices, os governadores.

O governo do PT está fazendo um jogo muito perigoso. Alguns de seus membros dizem, por exemplo, que os Black Blocs são fascistas. Mesmo que isso fosse verdade, não autorizaria a adoção de métodos ditatoriais para combatê-los. Até porque tais métodos podem voltar-se contra muitos dos lutadores que apoiam seu governo.

11 de novembro de 2013

O PT acumula poder, não democracia

O PT acaba de realizar seu Processo de Eleições Diretas (PED). Foram eleitos cerca de 100 mil dirigentes em todo País, de diretórios de bairro à direção nacional. Podiam votar cerca de 800 mil filiados.

Nenhum outro partido adota processo semelhante. Muito provavelmente, nem aqui nem no resto do mundo. Por isso, o PT considera o PED uma enorme demonstração de democracia. Não é. E são dirigentes do próprio partido que dizem isso.

Renato Simões é deputado federal e foi um dos candidatos a presidente da legenda. Suas palavras: “Espero que seja o último PED (...) do PT. O partido trouxe para sua estrutura interna as mazelas do sistema político que queremos reformar”.

Simões foi derrotado na disputa. Seu depoimento poderia ser fruto do despeito. Mas não é o caso de Romênio Pereira. Ele é dirigente nacional do partido e apoiou Rui Falcão, que venceu a eleição à presidência do PT. Pereira também defende o fim do PED.

O PED foi adotado em 2001. Na época, muitos militantes alegaram que o processo beneficiaria o poder econômico e a perpetuação de antigos dirigentes no poder. Não deu outra. O debate morreu e impera o continuísmo no controle da máquina partidária.

O processo anterior, através de congressos, também apresentava problemas. Mas eleições diretas envolvendo centenas de milhares de participantes tendem a reproduzir a maior das distorções das democracias de massa: a participação passiva do voto solitário.

O PT representou uma revolução partidária no País. Mas desde que se deixou sequestrar pelo calendário eleitoral, acumula poder, não democracia. Por isso, fica cada vez mais à vontade com aliados antidemocráticos.

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8 de novembro de 2013

O monopólio estatal do crime

Em seu artigo “Política como Vocação”, Max Weber definiu o Estado como “uma relação de homens que dominam seus iguais, mantida pela violência (considerada) legítima”. É o que ficou conhecido como monopólio estatal da violência. No Brasil, os aparelhos estatais de repressão vão muito além disso.

É o que mostra, por exemplo, uma declaração de um ex-integrante da PM paulista. O tenente-coronel Adilson Paes de Souza passou 28 anos na corporação. Também é autor do livro "O Guardião da Cidade - Reflexões sobre Casos de Violência Praticados por Policiais Militares".

Em 04/11, Paes disse à Folha que “a PM de São Paulo matou em cinco anos mais do que todas as forças policiais de segurança norte-americanas”. Afirmou, ainda, que ouviu policias militares dizendo “que se fossem impedidos de matar, ficariam sem condições de trabalho”.

Portanto, não surpreende que estejamos em 7º lugar entre os países mais violentos. É o que mostra o Anuário Estatístico do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado recentemente. São mais de 50 mil homicídios por ano. Duas vezes mais do que a média anual verificada na guerra entre Rússia e Chechênia, por exemplo.

Isso explica por que a população se mostra cada vez mais apavorada com a polícia. O Anuário diz que 70% da população não confiam na polícia. A corporação só perde para os políticos, com 95% de desconfiança.

Claro que os conservadores continuarão defendendo mais policiamento, repressão e prisões. Mas essa lógica vai entregando ao Estado brasileiro não só o monopólio da violência, mas o das práticas criminosas também. Sempre tendo como vítimas preferenciais a população pobre e negra. 

7 de novembro de 2013

O país do “estupra, mas não mata”

Na campanha presidencial de 1989, Paulo Maluf disse uma frase que ficou tristemente famosa. Perguntado sobre a violência contra mulheres, ele se dirigiu aos estupradores dizendo: “Tá bom, está com vontade sexual, estupra, mas não mata”. Décadas depois, essa repugnante tolerância em relação à violência sexual contra mulheres continua firme.

Em 2012, o número de estupros registrados no Brasil foi maior que o de homicídios dolosos (com intenção de matar). Os dados são da 7ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A publicação mostra 50.617 casos de estupro, contra 47.136 assassinatos. O aumento de 18,17% em relação a 2011 dá ao País um vergonhoso primeiro lugar no mundo.

Em 2006, foi aprovada a Lei Maria da Penha, tornando mais rigorosas as punições para agressões contra mulheres em casa ou na família. Desde então, o número de casos registrados cresceu 600%. Mas dados que envolvem violência contra mulheres padecem de um problema crônico. É difícil saber se eles aumentam ou diminuem variando com a ocorrência de casos ou apenas com sua denúncia.

Mas há outros indicadores que fazem suspeitar do pior. O Ministério da Saúde, por exemplo, dispõe de apenas 65 serviços para realizar abortos em vítimas de estupro em todo o país. São apenas 410 “delegacias da mulher” no território nacional, a grande maioria nas grandes cidades. A enorme presença da mulher como coisa de que se pode dispor na publicidade e na grande mídia dispensa comentários.

Mesmo que os números estejam distorcidos para pior, vivemos numa sociedade que acha possível oferecer à mulher o estupro em troca de sua vida.

6 de novembro de 2013

Desmontar a produção de vontades domesticadas

Encerrando os comentários ao livro de Lauro de Oliveira Lima, “Pedagogia: reprodução ou transformação”, mais alguns de seus trechos.

Aprender (aptendere) é “pegar no ar” algo que foi jogado, como se faz quando alimentam-se os cães: joga-se o naco de carne para ser abocanhado, num pulo pelo animal. O professor joga, também, o “ensino” no ar, e o aluno que “apreenda” (aprenda) se quiser e como puder...

Citando Rousseau: “A mania pedantesca do mestre é sempre ensinar às crianças aquilo que elas aprenderiam melhor por si mesmas”. E Jean Piaget: “Tudo o que se ensina à criança impede que ela descubra ou invente”. E o autor propõe:

...o ápice do êxito do professor é TORNAR-SE DESNECESSÁRIO, suicídio profissional que só pode ser praticado pelos educadores que, em vez de fazerem da classe um palco para seu HAPPENING, fazem dela uma plataforma donde os jovens autônomos alçam voo para outras galáxias!

Lima também sugere que os professores deixem de se comportar como “capatazes encarregados de fazer os operários trabalharem para o patrão”.

Mas como alcançar algo assim atuando no interior de um sistema criado para fazer o exatamente o oposto? Talvez, aproveitando suas brechas. E as mais importantes delas surgem nos momentos de greve e outras lutas. Mas é preciso ir muito além da pauta salarial.

Operários em greve tentam superar a mera negociação econômica quando procuram controlar a produção. Nas escolas, não basta paralisar a fabricação de vontades domesticadas. É preciso desmontá-la e convidar educadores, alunos e responsáveis a descobrir como criar jogos pedagógicos no lugar de técnicas de adestramento.

4 de novembro de 2013

A pedagogia que violenta carcereiro e encarcerado

Continuamos a discutir o livro de Lauro de Oliveira Lima, “Pedagogia: reprodução ou transformação”. Publicado em 1982, algumas de suas afirmações podem parecer descabidas atualmente. O autor diz, por exemplo, que “a maioria dos professores comporta-se como carcereiros ou guardas que vigiam o trabalho forçado dos presídios”.

Ocorre que carcereiros podem tornar-se tão prisioneiros quanto aqueles a quem devem guardar. E é isso o que vem acontecendo com o sistema escolar. Não só na rede pública. Nas escolas particulares, as condições de aprendizagem são muito melhores, claro. No entanto, seus métodos exigem obediência cega à lógica da competição mais extrema.

Assim, o que continua comum a todo o sistema escolar é seu caráter disciplinador. Com razão, Lima afirma que grande parte do tempo dos educadores “é dedicada à disciplina, como ocorre no exército”. Professores exigem, acima de tudo, respeito, diz ele. E respeito, em latim, significa “olhar para trás, demonstrando medo”.

As escolas já não são tão autoritárias como no tempo da ditadura, claro. Mas seus altos muros continuam vedando o acesso às falsas promessas de prazer e liberdade que o mercado faz.

Para muitas famílias pobres, a escola é, principalmente, um lugar para deixar as crianças enquanto trabalham. Esta é a principal queixa dos pais quando greves paralisam a rede pública. Já os ricos, consideram o estudo de seus filhos como investimento para o futuro, tal como ações na Bolsa.

Tudo muito distante das origens do sistema escolar. Formado, segundo Lima, pela “scholé” (lazer) e pelo “ludus” (jogo). Processo de desenvolvimento de atividades livres e situações problemáticas que "levam o pensamento para todas as direções".

Leia também: Micro dicionário da pedagogia de quartel

Micro dicionário da pedagogia de quartel

O livro “Pedagogia: reprodução ou transformação”, de Lauro de Oliveira Lima (1982), é um clássico da teoria da educação. Discípulo de Piaget, Lima era extremamente crítico à atual instituição escolar. Para dar uma ideia, segue abaixo a origem etimológica de alguns termos pedagógicos destacados pelo autor.

A palavra educação vem de “dux” e “ducis”, em latim “condutor”, “general”. “Educere” significa também puxar a espada. “Mestre” está ligado a “dominus”, o dono da casa. “Professor” vem do latim “profieri”, que quer dizer “ir na frente, gritando”, como fazem os “vaqueiros que conduzem a manada”.

Lente é “lector”. Na Idade Média, era aquele que lia pergaminhos e papiros para seus alunos. Com o tempo, o lente terminava por recitar o texto de cor. Provável origem do decoreba de nossos dias. A expressão latina “in signum” gerou “ensinar” e significa “dar ou colocar um sinal”, como fazem os pecuaristas com seu gado. No caso das escolas, o “ferro em brasa” deu lugar a “medalhas, notas e diplomas”.

Tudo isso pode parecer exagero. Mas serve como provocação para discutir nosso atual modelo pedagógico, resultado de uma longa evolução autoritária. Escolas são como quartéis que pretendem formar pessoas prontas a mandar nos de baixo e a obedecer os de cima. Servem à perfeição para uma sociedade autoritária, voltada para a exploração do trabalho humano.

Felizmente, os motins dentro dessas “casernas” escolares são cada vez mais comuns. Para os pedagogos conservadores, representam a “desmoralização da autoridade do professor”. Para a educação libertária, são gritos desesperados pela liberdade que deveria estar na base de todo processo pedagógico.

Leia também: Da pedagogia dos escravos à pedagogia da exploração

1 de novembro de 2013

Padrão Fifa? De jeito nenhum

“Jogadores negros podem boicotar Copa do Mundo na Rússia”. A proposta é do jogador da Costa do Marfim, Yaya Touré, que atua no Manchester City. Ele e muitos outros atletas negros vêm sendo vítima do racismo nos estádios europeus. Por isso, ameaçam com o boicote caso a Fifa não tome providências.

A Fifa lançou uma campanha contra o racismo. Mais publicidade que outra coisa. O presidente da entidade, Joseph Blatter, costuma dizer que ofensas raciais dentro do campo não devem ser levadas a sério. "Depois tudo se acerta após o jogo, com um aperto de mãos", afirmou certa vez.

O fato é que a Fifa age como uma organização criminosa. E não só em relação ao preconceito racial. A corrupção e o apoio a ditaduras também são sua especialidade.

Um dos episódios mais vergonhosos da história da entidade aconteceu durante as eliminatórias para a Copa de 1974. As seleções chilena e soviética deveriam se enfrentar no Estádio Nacional de Santiago. Cerca de um mês antes do jogo, Pinochet havia derrubado Allende e instalado uma ditadura. O estádio chileno foi utilizado como prisão, onde ocorreram torturas e execuções de milhares de pessoas.

Diante disso, a seleção soviética informou que não participaria do jogo. A nota emitida pelos soviéticos dizia: “por considerações morais, os atletas soviéticos não podem neste momento jogar no estádio de Santiago, salpicado com o sangue dos patriotas chilenos…”. A Fifa ignorou tudo isso e validou a classificação da seleção chilena.

Vamos sediar a próxima Copa. Mas se depender de corrupção, racismo e repressão nossas autoridades já adotaram o padrão Fifa há muito tempo.

Leia também:

31 de outubro de 2013

Bobagens e suas consequências nada bobas

Todos têm o direito de dizer bobagens. Mas alguns deveriam ser responsabilizados pelas consequências daquilo que falam. Dilma, por exemplo.

Eike é o nosso padrão, a nossa expectativa e, sobretudo, o orgulho do Brasil quando se trata de um empresário do setor privado.

A frase é da presidenta foi dita na solenidade de início da extração de petróleo pela OGX, em abril de 2012. Ano e meio depois, a OGX entrou com pedido de recuperação judicial. A empresa declarou dívidas de R$ 11,2 bilhões.

A vez de Lula chegou durante sessão comemorativa dos 25 anos da Constituição de 1988 no Senado Federal, em 29/10. Começou seu discurso elogiando José Sarney por seu desempenho durante a Constituinte de 1988. Terminou pior:

Se a juventude lesse a biografia de Getúlio Vargas, de Juscelino Kubitschek e outras biografias, provavelmente não iria desprezar a política, e muito menos a imprensa ia avacalhar a política como avacalha hoje.

O trecho abaixo descreve instrumentos de tortura utilizados pela ditadura do Estado Novo, implantada por Getúlio Vargas.

O maçarico, que queimava e arrancava pedaços de carne; os “adelfis”, estiletes de madeira que eram enfiados por baixo das unhas; os “anjinhos”, espécie de alicate para apertar e esmagar testículos e pontas de seios; a “cadeira americana”, que não permitia que o preso dormisse; e a máscara de couro.

Está no livro “Falta alguém em Nuremberg”, de David Nasser. Outros tribunais continuam aguardando seus réus. Incluindo antigos carrascos, novos vigaristas e seus mais recentes admiradores ou cúmplices.

Leia também: O PT quer uma burguesia pra chamar de sua

30 de outubro de 2013

Editorial do Globo: crônica que justifica violência fascista

O Globo publicou, hoje, o editorial “Vandalismo, democracia e fascismo”. Verdadeira lição de distorção conservadora em favor dos interesses mais poderosos do País.

O texto começa dizendo que houve “queda no apoio às manifestações” devido à ação dos black blocs. Realmente, pesquisa Datafolha teria mostrado uma diminuição de 89% para 66% desde junho. Mas a interpretação dos números deveria ser bem diferente. Apesar de todo o bombardeio da grande imprensa contra a resistência dos manifestantes à violência policial, pelo menos 2/3 dos entrevistados continuam a apoiá-los.

O editorial cobra firme combate do Estado às ações de “vandalismo”, ainda que com “baixo grau de letalidade”. Mas como vidraças, lixeiras, ônibus e viaturas não podem ser ameaçados, a ocorrência de mortes é considerada um “risco que está presente”.

“Entre as imagens que ficarão destes tempos”, diz o texto, a foto do coronel da PM paulista “sendo espancado por black blocs”. Ou seja, as centenas de imagens de manifestantes sendo linchados por hordas de policiais permanecerão nas redes virtuais, distantes da enorme audiência desconectada.

O Globo manifesta espanto diante do apoio de “professores sindicalistas” aos black blocs. Como se a decisão tivesse sido aprovada por uma dúzia de lideranças e não por milhares de grevistas, testemunhas e principais vítimas da violência nas manifestações.

Por fim, o texto chama de fascismo a “prática de perseguir e agredir fisicamente” aqueles que são considerados inimigos. A descrição é muito mais adequada às ações da polícia, não às de suas vítimas. E o editorial do Globo se revela como a crônica que justifica o caráter fascista de toda essa violência.

Leia também: O Yellow Bloc

29 de outubro de 2013

O saber automático por trás do preconceito

Em 26/10, O Globo publicou a entrevista “Neurocientista põe em xeque o inconsciente de Freud”. Trata-se do depoimento do físico Leonard Mlodinow, autor do best-seller “O andar do bêbado”. Opondo-se ao que defenderia a psicanálise, ele afirma que “ninguém conseguirá acessar seu inconsciente pensando e falando”. Nada surpreendente, vindo de alguém formado em Física.

De qualquer maneira, Mlodinow faz uma afirmação da qual é difícil discordar. Em relação ao preconceito, ele diz:

Existem dois tipos de preconceito: o deliberado, que hoje é menos prevalente, e o inconsciente. Neste último tipo, a pessoa realmente acha que não é preconceituosa; há casos, inclusive, em que ela pode até ser militante daquela causa. Mas testes detectam que há preconceito. Estudos mostraram que mesmo negros acabam fazendo associações raciais negativas inconscientes. Somos bombardeados por imagens negativas e estereotipadas de mídias como TV, cinema e internet. E a nossa mente inconsciente tende a generalizar para simplificar.

Muitos cientistas sociais concordariam. Algo parecido foi dito, por exemplo, em um artigo do sociólogo Muniz Sodré. Com o título “Diversidade e diferença”, o texto foi publicado na “Revista Científica de Información y Comunicación”, em 2006, na Espanha. Um trecho afirma:

Você vê alguém com um turbante na cabeça e pensa que já sabe tudo sobre ele, que é, por exemplo, árabe, logo, islamita, logo investido de determinada disposição frente ao mundo. O racismo apresenta-se geralmente como esse “saber automático” sobre o Outro. Os preconceitos funcionam assim na prática: valem para qualquer outra forma diversa.

Saber automático. Eis uma das principais bases da intolerância. E a grande mídia é uma de suas maiores difusoras.