Doses maiores

18 de maio de 2012

A música clássica brasileira já foi negra

Em 1780, o desembargador português José João Teixeira Coelho alertava os futuros governadores de Minas Gerais:

Aqueles mulatos que não se fazem absolutamente ociosos, se empregam no exercício de músicos, os quais são tantos na Capitania de Minas que, certamente, excedem o número dos que há em todo o Reino.

Os músicos de que fala o texto produziam obras eruditas. Eram filhos de pai português e mãe africana, coisa comum no Brasil Colônia. Mas como se tornaram músicos? Segundo o musicólogo Paulo Castagna:

Na primeira metade do século XVIII ainda vigorava, no Brasil, o monopólio dos músicos portugueses. Mas com o desenvolvimento urbano, enriquecimento e proliferação das irmandades, a demanda de música aumentou fantasticamente na segunda metade desse século. Passou a não haver suficiente número de profissionais brancos para atender ao enorme aumento das encomendas de música. Foi assim que os afrodescendentes entraram para esse mercado novo e promissor, atendendo com eficiência às urgentes e numerosas solicitações das irmandades.

Entre os mais talentosos estavam José Maurício Nunes Garcia, Lobo de Mesquita e Castro Lobo. Todos vítimas de grandes humilhações e constrangimentos.

Castro Lobo, por exemplo, tornou-se padre. Mas antes precisou dar um jeito de provar que seus pais e avós eram “inteiros e legítimos cristãos velhos, limpos de sangue, sem fama alguma de judeus, mouros, mulatos ou mouriscos, ou de alguma outra infecta nação”.

Em relação a Lobo de Mesquita, Castagna afirma que ele “viveu no mesmo período de Mozart, Haydn e Beethoven, que compuseram música de uma beleza sonora incomparavelmente maior ao de toda a música de seus contemporâneos no Brasil e no continente americano da época”. Mas, diz o musicólogo:

...é preciso considerar que esses compositores não foram descendentes de escravos africanos, nem nascidos em uma possessão europeia na América; não foram tratados com devastador preconceito pela sociedade branca da época, e não tiveram que aprender música em condições precárias, a partir de poucos recursos e com escassos mestres; não enfrentaram a forte competição profissional e a luta pela sobrevivência em meio a condições de vida bem mais desfavoráveis que as do Velho Mundo; não enfrentaram a rejeição do próprio Estado e não tiveram a maior parte de suas composições perdidas ou mutiladas e nem impressas somente dois séculos após sua morte.

E conclui:

Se Mozart, Haydn e Beethoven tivessem nascido e vivido como mulatos em Minas Gerais no século XVIII, provavelmente não teriam feito mais do que lá fez Lobo de Mesquita.

As informações acima são da série de programas “Alma Latina: Música das Américas sob domínio europeu”, de Paulo Castagna. Ela é transmitida pela Rádio Cultura FM de São Paulo. Também disponível na página http://paulocastagna.com/alma-latina.

2 comentários:

  1. Bom dia. Infelizmente ainda sobrevivi no carnaval da Bahia, os percussionistas e batuqueiros como eu, Monica Millet, não temos o menor valor, mesmo valor dado aos trios elétricos pelos camarotes da corte instalada nas avenidas e ruas da cidade. A máquina mortal da cultura afro descendente, Associação de trios da Bahia, e afins demarcam, hostilizam, o espaço conforme sua conveniência, nos garantindo as sobras da multidão. M.Millet

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  2. Não entendi direito, mas imagino que você esteja se referindo à indústria do carnaval na Bahia, que é tão terrível quanto qualquer outra indústria. E ainda conta com a cumplicidade de muitos afrodescendentes. Mas é assim há muito tempo. Na época da escravidão não havia capitães do mato tão negros como suas vítimas?
    Valeu o comentário, Monica.
    Abraço

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