Doses maiores

29 de julho de 2016

Cuba a um passo de um grave retrocesso

O escritor cubano Leonardo Padura publicou em 16/07, na Folha, o artigo “Período Especial outra vez?”. Ele refere-se a um momento terrível na história de Cuba, durante a década de 1990, por ele assim descrito:

Cortes de eletricidade prolongados, escassez de alimentos, paralisação praticamente total do transporte público, inflação incontrolável –essas foram algumas das realidades do país durante anos em que Cuba ficou economicamente só, antes e depois do desaparecimento da URSS e sob a pressão então aumentada do embargo norte-americano...

A ameaça de retorno de dificuldades tão grandes se deveriam à crise por que passa a Venezuela, principal parceira econômica da ilha e sua maior fornecedora de petróleo. O país de Chávez seria uma espécie de sucessora da União Soviética na relação de dependência externa de que a economia cubana nunca conseguiu se livrar.

O mais triste disso tudo é que o maior candidato a herdar a economia da ilha como sua dependente é exatamente o imperialismo estadunidense. O mesmo que 70 anos atrás usava Cuba como seu prostíbulo particular até que a Revolução acabou com a humilhação.

O governo americano parece estar trocando sua política criminosa de bloqueio a Cuba pelo abraço mortal de um urso. É muito provável que o preço a ser pago por alguns poucos investimentos na ilha seja uma invasão pacífica, mas fatal para sua autonomia econômica e conquistas sociais.

Infelizmente, um desfecho tão triste deverá ser obra do próprio regime, com os Castros à frente. Uma tragédia de que os socialistas precisam tirar as mais duras lições.

Leia também: Cuba: de volta aos bordéis?

27 de julho de 2016

Escravos de nossos monstros de bolso?

Em 24/07, Sérgio Telles publicou artigo no Estadão, argumentando que a recente febre de caça aos Pokemóns é “uma fuga à realidade tão antiga quanto o ser humano”.

O psicanalista lembra o que Freud dizia sobre não tolerarmos “um contato ininterrupto com a realidade”. Daí, precisarmos cortar diariamente o contato com ela através dos sonhos. Estes se equivaleriam à “realidade virtual” onde realizaríamos “os desejos que a realidade nos obriga a abandonar”.

As artes e, especialmente as narrativas, como a literatura e o cinema, diz ele, também seriam realidades virtuais. Mesmo de caráter ficcional, elas possibilitariam acessar "importantes verdades humanas que nos seriam inacessíveis sem elas”.

Alexandre Matias publicou artigo na mesma edição, afirmando que o “Pokemón Go vai transformar o mundo em uma enorme rede social”.

O jornalista recorda o historiador Johan Huizinga, que considerava a transformação da vida em jogo uma tendência natural do ser humano. Uma forma de buscarmos uma “consciência de ser diferente da ‘vida cotidiana’”.

Pokémon Go só iria além desses conceitos “ao trazer o jogo para a atividade online e offline simultaneamente”, conclui.

Mas por que tanto empenho em fugir da vida cotidiana? Seria um mal da essência humana ou de certa forma histórica de nos relacionarmos? Essa pressão psicológica não seria menor ou inexistente no dia-a-dia de nossos antepassados?

Talvez, tudo isso tenha a ver com a nossa crescente rendição à lógica das mercadorias. Afinal, Pokémon vem do inglês “pocket monster”, ou “monstro de bolso”. Esta parte de nosso vestuário que ganhou grande importância quando carregar dinheiro ou seus equivalentes passou a nos definir. Ou melhor, escravizar.

26 de julho de 2016

Aposentadoria, só depois da morte

Voltamos à reportagem “Sobra dinheiro na previdência”, publicada no portal EPSJV/Fiocruz por Cátia Guimarães, em 18/07. Agora, abordando a proposta de aumento da idade mínima para a aposentadoria.

A maior justificativa para adotar essa medida seriam problemas para custear a aposentadoria por tempo de contribuição. Ocorre que dos 32 milhões de benefícios do INSS, apenas 16% estão nessa modalidade, diz a matéria. É o resultado do alto índice de informalidade do mercado de trabalho.

Outro dado muito utilizado é a idade em que se dão as aposentadorias. Segundo governo e mídia, a média seria de 55 anos. Parece cedo, mas a grande maioria não se aposenta para descansar em seus aposentos. Quase todos continuam a trabalhar e as aposentadorias servem apenas como um reforço na renda familiar.

Além disso, como afirma Sara Granemann, professora da Escola de Serviço Social da UFRJ:

O aumento da expectativa de vida é um feito da humanidade no século 20. Se elevar para todo mundo a aposentadoria para 65 anos, por exemplo, você terá pessoas se aposentando a menos de dez anos da morte.

Já Vilson Romero, presidente da Associação Nacional dos Fiscais da Previdência, lembra que não há como estabelecer uma idade mínima para aposentadoria num país “onde se morre aos 55 anos no campo e há quem viva até os 85, 90 anos no Rio Grande do Sul”.

Em 1995, entidades sindicais lançaram uma mobilização contra a Reforma da Previdência de FHC. Criado por Vito Giannotti, o jornal da campanha dizia: “Você só vai se aposentar depois de morto!”. Infelizmente, muitos anos e governos depois, a publicação continua atual. 

25 de julho de 2016

Primeiros ensaios para a repressão aos movimentos sociais

Em 21/07, 10 supostos terroristas brasileiros foram presos pela Polícia Federal. Algumas horas depois, as redes virtuais mostravam fotos dos Trapalhões com dizeres como “Desmontada perigosa célula terrorista no Brasil”.

De fato, o perfil dos presos mostrado pela PF se aproxima mais de Didi, Mussum, Dedé e Zacarias que do Estado Islâmico. Um deles, por exemplo, teria tentado comprar um rifle AK-47 pela internete.

O próprio ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, admitiu o amadorismo dos pretensos terroristas. Mas disse que a prisão se justificava para mostrar a prontidão dos órgãos de segurança.

O ministro lembrou que as prisões só foram possíveis graças à nova legislação antiterrorista. Como os suspeitos manifestaram apenas intenções, foram presos pelo que a lei recém-aprovada chama de “atos preparatórios”. Na legislação comum, apenas “atos executórios” seriam suficientes para justificar detenções.

Mas não é bem assim. Em 2014, por exemplo, militantes foram detidos sob a alegação de que estariam planejando manifestações durante o jogo final da Copa. Ou seja, dois anos antes da aprovação da legislação antiterrorista, já houve punição por “atos preparatórios”.

Moraes foi secretário da Segurança de São Paulo em 2015. No cargo, ele também já praticava seus atos preparatórios. Sob sua gestão, a polícia foi responsável por uma em cada quatro pessoas assassinadas na capital paulista.

Foi ele também o responsável por ações truculentas da PM contra os alunos que ocuparam as escolas públicas paulistas.

Ou seja, as prisões dos terroristas “atrapalhados” não têm a menor graça. Tudo indica que são ensaios preparatórios para a repressão contra movimentos sociais, sob o pretexto de garantir a segurança dos Jogos.

Leia também: Emendas à Lei Antiterrorismo e outras notas

Vito Giannotti contra a ditadura do capital

Um ano atrás, a causa socialista perdia Vito Giannotti. O Núcleo Piratininga de Comunicação, fundado por ele e Claudia Santiago, fez uma homenagem em 21/07. Entre as atividades, uma palestra de Reginaldo Moraes, um de seus mais antigos companheiros de luta.

“Régis” lembrou os duros tempos em que ele e Vito foram obrigados a militar clandestinamente. Sob a ditadura empresarial-militar de 1964, fazer política de esquerda era risco de morte ou tortura.

Apesar disso, Vito estava entre os que achavam que só o trabalho de base e a luta de massas poderiam apontar alguma saída.

O jovem italiano que chegou ao Brasil em plena ditadura escolheu ir para as fábricas metalúrgicas. Não apenas para ensinar e pregar a resistência.

Seus colegas de trabalho eram quase todos de origem pobre, pouco letrados e nada sabiam sobre as lutas históricas dos trabalhadores do mundo. Mesmo assim, Vito compreendia que eram eles seus melhores professores na construção da resistência.

Vito foi preso e torturado, sem jamais desistir da luta democrática e da defesa do socialismo. Acima de tudo, sem deixar de apostar num processo revolucionário construído de baixo para cima. 

A ditadura política foi derrotada graças a guerreiros como Vito. Mas ele sabia que a ditadura econômica continuava firme. Por isso, jamais deixou de lutar e nunca abandonou o trabalho de base, a disputa de hegemonia e o respeito à voz de explorados e oprimidos.

Infelizmente, não é o que faz grande parte da esquerda, encastelada em seus aparelhos e estruturas, rendida ao senso comum e de costas para as ruas.

Vito faz mais falta do que nunca.

Leia também: Vito Giannotti e a história da luta dos trabalhadores

21 de julho de 2016

A cara-de-pau do governo na Reforma da Previdência

“Sobra dinheiro na previdência”, diz o título da excelente reportagem de Cátia Guimarães, publicada no portal EPSJV/Fiocruz, em 18/07.

A afirmação é da economista Denise Gentil, professora da UFRJ. A receita bruta da previdência em 2014 foi de R$ 349 bilhões para pagar R$ 394 bilhões em benefícios, diz ela. Mas quando se incluem os mais de R$ 310 bilhões arrecadados da CSLL, Cofins e PIS-Pasep, o orçamento chega a R$ 686 bilhões. O déficit vira superávit com folga.

Mesmo quando entram nessa conta os gastos com saúde e assistência, sobram R$ 54 bilhões. O problema é que 20% do total geral são desviados pela Desvinculação de Receitas da União, criada pelos tucanos e mantida pelos petistas para garantir o criminoso pagamento da dívida pública.

Sem falar nos R$ 69 bilhões de renúncia fiscal dos recursos previdenciários previsto pelo Orçamento de 2016.

Em relação às previsões sobre quebra do sistema em 2040, Sara Granemann, professora da Escola de Serviço Social da UFRJ, pergunta: “Os governos não conseguem prever a próxima crise e querem nos convencer do que vai acontecer em 2040?”.

Na realidade, por trás disso tudo está o mercado de seguros. Em 1997, o Brasil tinha 255 fundos de pensão que movimentavam R$ 72 bilhões. Em 2015, eram 308 fundos e R$ 685 bilhões. Uma expansão feita às custas do desmonte da previdência pública.

Ou seja, tudo indica que a reforma da previdência só pretende turbinar ainda mais esse mercado bilionário. Neste caso, os trabalhadores não pagam a conta apenas com seus bolsos, mas com suas vidas.

Na previdência, sobra dinheiro. No governo, sobra cara-de-pau.

20 de julho de 2016

Na raiz do terrorismo, a guerra

Em 19/07, Mario Sérgio Conti escreveu na Folha sobre o atentado em Nice. Segundo ele, “vigilância e investigação” não trarão paz à França. “O fim da guerra, talvez”.

De fato, o combate ao terrorismo está destinado ao fracasso enquanto não atacar suas causas. E estas não estão relacionadas à facilidade de acesso e uso de armas e explosivos. Até porque, como sabemos, até caminhões podem ser eficientes instrumentos de morte.

Reprimir, proibir ou perseguir religiões, modos de vida e convicções políticas também só desperta reações violentas na mesma proporção. É o que prova o aumento vertiginoso dos casos de ataques terroristas exatamente depois que foi iniciada a “Guerra ao Terror” pelo imperialismo ocidental.

Por outro lado, os recentes atentados contra policiais americanos foram cometidos por veteranos de guerras que os Estados Unidos travam pelo mundo. Foi nos campos de batalha estrangeiros que eles treinaram o ódio que acabou por se manifestar em sua terra natal.

Portanto, Conti acerta ao dizer que são as guerras as verdadeiras causas do terrorismo. Afinal, conclui ele, “não houve mais atentados terroristas na Espanha desde que o país tirou suas tropas do Levante”, referindo-se à região que abrange Síria, Jordânia, Israel, Palestina e Líbano.

Mas as muitas guerras que acossam o mundo desde a consolidação do capitalismo mostram que os conflitos bélicos são parte integrante de seu funcionamento. Além disso, vivemos sob o único sistema econômico na História que depende da existência de força de trabalho humana desocupada para diminuir seus custos de produção.

O capitalismo promove, ao mesmo tempo, desemprego em larga escala e abundante oferta de carne para canhão.

Leia também:
O combate ao terrorismo como pretexto
Olimpíadas e classes perigosas

19 de julho de 2016

A ferida e o câncer

Um dos significados da palavra “corrupção” é “apodrecimento”. Como acontece com uma ferida não tratada adequadamente.

O chefe da Operação Lava Jato, Deltan Dallagnol, estima que o dinheiro desviado pela corrupção no Brasil fique em torno de R$ 200 bilhões por ano.

Feio, né? Como uma ferida purulenta e dolorida.

Enquanto todos olham enojados para a ferida, o empresário Laodse de Abreu Duarte, por exemplo, deve R$ 6,9 bilhões à União. Não por acaso, este senhor é diretor da Fiesp, entidade que liderou os recentes e finados protestos contra a corrupção. Ele sozinho deve mais que Bahia, Pernambuco e outros 16 estados juntos.

Enquanto todos tentam limpar a ferida, a sonegação empresarial acumulada no País é de quase R$ 1,5 trilhão, cinco vezes o “buraco” no Orçamento federal previsto para 2016.

Enquanto a ferida assusta, o Tesouro paga R$ 1,5 bilhão em juros da dívida pública por dia. Um dinheiro que só beneficia cerca de 20 mil famílias brasileiras e alguns milhares de especuladores internacionais.

Enquanto a ferida vaza pus, levantamento da consultoria McKinsey, de 2014, revelou que ricaços brasileiros possuem US$ 520 bilhões escondidos em paraísos fiscais.

Enquanto a ferida continua sangrando, o Banco Central realiza operações financeiras chamadas “swap cambial”, cuja função é proteger os grandes investidores de riscos com variações da moeda. De setembro de 2014 a setembro de 2015, essas operações custaram R$ 207 bilhões aos cofres públicos. Mais que o dobro do imaginário déficit do INSS.

Enquanto lavamos a ferida com jatos d’água, o câncer se espalha pelo organismo da economia popular.

Leia também: Muito trauma, nenhuma ruptura

18 de julho de 2016

Olimpíadas e classes perigosas

Em 15/07, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, declarou à imprensa que o governo federal criou um cadastro para a Olimpíada do Rio com 500 mil suspeitos de terrorismo.

Em 1888, um parlamentar da Câmara Federal de Deputados fez a seguinte afirmação:

As classes pobres e viciosas sempre foram e hão de ser sempre a mais abundante casa de toda sorte de malfeitorias: são elas que se designam mais propriamente sob o título de “classes perigosas”; pois quando mesmo o vício não é acompanhado pelo crime, só o fato de aliar-se à pobreza no mesmo indivíduo constitui um justo motivo de terror para a sociedade.

O conceito de classes perigosas apareceu em 1857, em um livro do psiquiatra austríaco Benedict-Augustin Morel chamado “Teoria da Degenerescência”. Os “degenerados” em questão seriam aqueles que não possuem:

...nem a inteligência do dever, nem o sentimento da moralidade dos atos, e cujo espírito não é suscetível de ser esclarecido ou mesmo consolado por qualquer ideia de ordem religiosa.

Por “ordem religiosa” entenda-se apenas a cristã.

O cadastro anunciado por Jungmann é secreto, mas é muito provável que tenha sido montado segundo critérios muito parecidos aos defendidos por Morel e pelo deputado do século 19.

Basta ter origem social, cor, nacionalidade e religião consideradas “perigosas” para ser forte candidato a fazer parte dos 500 mil possíveis terroristas monitorados pelo governo federal.

Nada mais compatível com o que disse uma vez Pierre de Coubertin, fundador dos jogos olímpicos modernos:

As raças são de valor diferente e a raça branca, sendo de essência superior, todas as outras lhe devem vassalagem.

Leia também: O combate ao terrorismo como pretexto

17 de julho de 2016

O combate ao terrorismo como pretexto

Reginaldo Nasser é professor de Relações Internacionais da PUC-SP. Em 05/07, publicou em seu blog “Terrorismo: as realidades incômodas — e ocultadas”. Alguns dos números apresentados pelo artigo:

- 80% das vítimas de ataques terroristas no mundo estão em 5 países (Iraque, Nigéria, Afeganistão, Paquistão, Síria e Somália), ou seja, a grande maioria das vítimas são muçulmanas.
- 80% das mortes por terroristas no Ocidente são resultado de ações de grupos de direita. Ou seja, o “fundamentalismo islâmico” (não entendo porque não é classificado como de direita), não é a principal causa de terrorismo no Ocidente.
- Pelo menos, 437 mil pessoas são vítimas de homicídio a cada ano (no Brasil 56 mil), ou seja, 13 vezes mais do que o número de vítimas do terrorismo.

Além disso, diz Nasser, depois que os Estados Unidos e aliados declararam “Guerra ao Terror”, o número de pessoas mortas por terrorismo passou de 3.329, em 2000, para 32.685, em 2014.

Agora, alguns dados que não estão no texto:

- A fome causa 100 mil mortes por dia.
- O trânsito mata 3 mil, diariamente.
- Em 2016, haverá 1,5 milhão de mortes devido a tuberculose.
- O tabaco mata quase 6 milhões de pessoas todos os anos.

Tudo isso em nível mundial. Por que, então, não declarar guerra às indústrias de fumo e automóveis? Por que não enviar exércitos de profissionais de saúde para as regiões mais vulneráveis a doenças? Por que não gastar muitos bilhões em saneamento básico?

Porque o terrorismo civil é o pretexto perfeito para que o terrorismo estatal amplie seu poder sobre populações e recursos naturais.

Leia também: O Estado como instrumento de terror

14 de julho de 2016

Marx, apesar dos marxistas

Mais um comentário sobre o livro "A Tolice da Inteligência Brasileira", de Jessé Souza. Desta vez, uma provocação aos marxistas mais chegados a relações mecânicas entre base econômica e fenômenos sociais. Em relação a eles, o autor diz o seguinte:

Ao construir as realidades simbólicas como epifenômeno de interesses materiais e ao imaginar que possam existir realidades materiais não mediadas simbolicamente, o marxismo não desenvolve um “aparato conceitual” que possa dar conta – como fez Weber no contexto de sua sociologia das religiões – do “trabalho da dominação social” que se transforma em “convencimento”, em dominação aceita e “desejada” pelo próprio oprimido. Daí essa mania um pouco ridícula dos marxistas de sempre procurarem “consciência de classe” e “atores revolucionários” quando esses são sempre construções improváveis e que existem mais como exceção do que como regra. É como se a realidade da exploração não fosse um fenômeno total, existencial, afetivo, subpolítico, emocional e ligado a todo tipo de estímulo irracional, mas apenas uma exploração econômica que bastasse ser mencionada para ser compreendida.

Isso não significa que não existam belas análises políticas marxistas como as do próprio Marx, muito especialmente em relação aos estudos das lutas de classe na França do século XIX. Mas elas decorrem da genialidade pessoal de Marx, não das categorias e de um quadro de referência teórico refinado que pode ser aplicado a diversos contextos concretos.

Acrescentando mais uma observação que favorece Marx contra muitos de seus seguidores, lembremos a seguinte passagem da “Introdução à Contribuição para a Crítica da Economia Política”: “O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações...”

Leia também:

13 de julho de 2016

A pobreza da esquerda economicista

Em 05/07, o IHU On-Line publicou entrevista com Gabriel Feltran, professor de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos. Ele estuda as relações conflituosas entre família, mercado de trabalho, igrejas, políticas sociais, crime e Estado.

Em relação à expansão da criminalidade entre os mais pobres, Feltran destaca as desigualdades econômicas. Afinal, diz ele, vivemos uma realidade em que “uns criam os filhos com meio salário mínimo mensal”, enquanto “outros andam de helicóptero e gastam dois salários mínimos em um jantar”.

Mas o entrevistado recusa a abordagem economicista dos conflitos sociais. Afinal, afirma ele, se há “jovens inscritos no tráfico que pensam apenas no dia de hoje, gastam mil reais em uma noite”, também há os que “trabalham durante o dia e estudam à noite, pagando prestações de carro, casa e eletrodomésticos”.

Para ficar ainda mais claro, outra afirmação:

O rapaz negro que trabalha no shopping como segurança e faz faculdade à noite ou o filho de operário que ingressou por ação afirmativa na universidade pública não têm visões de mundo iguais às do ‘irmão’ do PCC ou do pastor da Igreja Universal, ou ainda de um soldado da Polícia Militar. E eles podem estar na mesma família, porque os projetos de vida são mais individualizados e o mercado de trabalho mais segmentado. Polícia, crime, igreja e trabalho são esferas de vida que se interpenetram.

Ou seja, a realidade dos mais pobres é tão tridimensional como qualquer outra. Que a direita não entenda isso, compreende-se. Que a maior parte da esquerda faça o mesmo, só mostra que chata e pobre, mesmo, é sua visão de mundo.

Leia também: Jessé Souza e a necessária sociologia das subjetividades

12 de julho de 2016

A luta de classes tem que ser feminista

Há quem diga que o feminismo tem que ser classista. Mas o contrário é ainda mais verdadeiro.

É o que mostra reportagem publicada no “Brasil de Fato” por Márcio Zonta, em 09/07. Segundo o título, “Sete estados mineradores concentram 31,2% dos casos de violência contra a mulher”. São eles Pará, Minas Gerais, Bahia, Goiás, Maranhão, Piauí e São Paulo.

No município mineiro de Divinópolis, por exemplo, trabalhadoras dirigem enormes caminhões que transportam minério. Enfrentando turnos de oito a dez horas, elas não têm onde urinar, levando a casos de incontinência urinária que as obriga a usar fraldas geriátricas.

Recebendo salários menores, a força de trabalho feminina nas minas cresceu 28% em 2013. Mas há 18% de mulheres que trabalham sem remuneração. A maioria, em garimpos, “ajudando” os maridos. Muitas vezes, levam seus filhos pequenos.

O ritmo exaustivo do trabalho pode contribuir também para o crescimento de casos de agressão a mulheres. Registros policiais mostram que 80% dos casos de violência contra a mulher em Divinópolis envolvem trabalhadores da Vale.

E ainda há os casos de abuso e exploração sexual infantil. Em Bom Jesus das Selvas, Maranhão, a chegada de 3 mil homens para trabalhar na Estrada de Ferro de Carajás causou o aumento de casos de gravidez em meninas com idade entre 13 e 16 anos.

Em “A Sagrada Família”, Marx disse que o progresso da mulher e de sua liberdade mostrariam o grau em que “a natureza humana” pode triunfar sobre a bestialidade. Se o movimento sindical e a esquerda não assumirem este combate, continuarão a cerrar fileiras com as bestas do capital.

Leia também: Dia Internacional da Luta Feminista

11 de julho de 2016

Panteras Negras: armados contra o racismo policial

Zéh Palito e Werc Alvarez
O assassinato de cinco policiais durante uma manifestação contra o racismo policial, em Dallas, Texas, abalou os Estados Unidos.

Lideranças do movimento negro estadunidense e no mundo todo condenam a ação. Mas não negam que era uma reação esperada diante da brutalidade racial das forças policiais estadunidenses.

Nestes momentos surge a necessidade de debater meios de autodefesa para os setores que lutam contra a exploração e opressão capitalistas. Mas não se pode alimentar a ilusão de que as forças de esquerda possam responder militarmente à violência estatal.

Nos anos 1960, os Panteras Negras foram para as ruas empunhando armas. Mas seus fundadores jamais defenderam o enfrentamento aberto contra o aparato repressivo.

Na verdade, os Panteras acompanhavam as ações policiais, limitando-se a exigir que a lei fosse respeitada por aqueles que deveriam zelar por seu cumprimento.

Mesmo armados, os militantes antirracistas não cometiam crime algum. Apenas exerciam o direito constitucional que tem todo cidadão estadunidense de portar armas para sua defesa.

O perfil militar dos Panteras era um modo de atrair a juventude e as lideranças populares para sua principal proposta: a educação política e a auto-organização dos explorados.

Entre os programas criados por eles estavam café da manhã gratuito para crianças, “Escolas da Liberdade”, clínicas gratuitas de saúde e cooperativas habitacionais.

Os Panteras combinavam legalidade armada com disputa de hegemonia. Desta combinação também fazia parte o combate a quem defendia ações discriminatórias e violentas contra brancos. Para eles, a questão central era a exploração de classe.

Em mais um momento de resistência radicalizada contra o racismo estatal, é fundamental aprender com esta importante experiência de autodefesa.

Galileu e o pacto entre ciência e religião

Há quatro séculos, em 1616, a Igreja Católica proibia a divulgação da teoria heliocêntrica, de Copérnico. Um dos principais atingidos pela medida foi Galileu Galilei, que a vinha aperfeiçoando.

Chamado a Roma para se explicar, Galileu apresentou argumentos bastante sólidos. Em “Para uma ontologia do ser social”, o marxista George Lukács explica como a Igreja, diante da situação embaraçosa, recorreu “à teoria da dupla verdade”, elaborada pelo cardeal Belarmino:

Quando novas cartas astronômicas, baseadas em novas hipóteses, facilitarem a navegação de nossos marinheiros, eles devem usá-las. A nós desagradam apenas as teorias que falsificam a Escritura.

Ou seja, os cientistas deveriam deixar as questões religiosas para as autoridades eclesiásticas. Seu trabalho envolve a razão, o do clero, a fé.

De certa maneira, essa “divisão de trabalho” persiste até hoje. Há poucos cientistas que se dedicam a questionar a existência de forças divinas e transcendentes. Já a Igreja Católica, por exemplo, reconheceu as teorias de Galileu e Darwin.

Mas há um problema mal resolvido nesse arranjo. É novamente Lukács que o expõe:

...se a ciência não se orienta para o conhecimento mais adequado possível da realidade existente em si, (...) então sua atividade se reduz, em última análise, a sustentar a práxis no sentido imediato. (...) uma manipulação dos fatos que interessam aos homens na prática.

E de que homens falava Lukács? Daqueles que controlam as instituições. Neste caso, as religiosas e científicas. E a que prática se dedicam? Àquela que justifica a exploração e a opressão por meio de dogmas fantasiados de verdades.

Há quatro séculos, ciência e religião mantêm um pacto muito conveniente aos poderosos.


7 de julho de 2016

As raízes negras de nossas lutas operárias

A esquerda costuma dizer que a primeira greve do País foi feita pelos tipógrafos, em 1858, no Rio de Janeiro. Mas um ano antes, na mesma cidade, trabalhadores escravizados de uma fábrica do Visconde de Mauá já haviam cruzado os braços.

É o que revela o artigo “As greves antes da ‘grève’: as paralisações do trabalho feitas por escravos no século XIX”, de Antonio Luigi Negro e Flávio dos Santos Gomes.

O texto mostra o que já deveria ser óbvio: o “mito do imigrante radical (...) impede que o trabalhador local (a começar pelo escravo) apareça como protagonista das lutas operárias”.

Afinal, 45% dos operários das manufaturas do Rio de Janeiro entre 1840 a 1850 eram escravos. Especialmente, em fábricas de vidro, papel, sabão, couros, chapéus e têxteis.

No final da década de 1820, cativos, negros livres e outros trabalhadores pararam uma fábrica de pólvora, também no Rio. E, em abril de 1833, outro levante em terras cariocas fez escravos de uma caldeiraria enfrentarem a polícia, ocorrendo “tiros e mortes”.

Em 1857, uma paralisação promovida por carregadores afrodescendentes paralisou o porto e o setor de abastecimento e transporte de Salvador por duas semanas.

Naquela época, tais paralisações eram chamadas de “parede”. A denominação “greve”, de origem francesa, deve ter se popularizado com a maior participação dos imigrantes nas lutas. Não se pode descartar, porém, a colaboração de uma historiografia europeizada.

Mas, como pretende o artigo, o importante é resgatar a importância dos milhões de explorados africanos, índios, “brasileiros” e imigrantes na “invenção da liberdade” num mundo que jamais deixou de ser “marcado pela escravidão”.

Leia também: O racismo da inteligência brasileira

O racismo da inteligência brasileira

De volta ao livro "A Tolice da Inteligência Brasileira", de Jessé Souza. Agora para falar sobre o que o autor considera “uma forma velada – e, portanto, especialmente perigosa – de ‘racismo’”.

É o “racismo culturalista”, que, diferente do “racismo de cor”, defende a ideia de que certo “‘estoque cultural” é a causa e a “legitimação da desigualdade entre indivíduos e nações”.

Segundo essa visão, diz Souza, as “sociedades avançadas” seriam mais “racionais” e “moralmente superiores”. Já sociedades como as latino-americanas seriam “afetivas e passionais”. Consequentemente, corruptas, “dado que supostamente ‘personalistas’”.

Este tipo de discriminação teria raízes no que Souza chama de “culturalismo liberal”. Uma concepção que passou a hegemonizar a sociologia nacional a partir das obras de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda e Raymundo Faoro.

Esse culturalismo se basearia em uma idealização das esferas culturais “tidas como reservatórios da confiança interpessoal”. Nele os “estímulos simbólicos” aparecem desligados das instituições fundamentais da dominação social.

Segundo essa lógica, as sociedades “se dividiriam entre decentes e corruptas”. E os habitantes destas últimas são vistos como potencialmente indignos de confiança.

Um exemplo são as nossas taxas de juros, mantidas em níveis estratosféricos devido a supostas dificuldades dos brasileiros em “honrar seus compromissos”. Como se a grande maioria dos caloteiros não fossem pessoas brancas, ricas e com ascendência europeia.

Esse racismo culturalista torna ainda mais “opacos” os mecanismos de classificação e desclassificação social próprios de qualquer sociedade capitalista, afirma o autor. Desse modo, o que é privilégio de classe aparece como produto de esforço individual e mérito pessoal.

O autor diz que é racismo cultural, mas pode chamar de racismo meritocrático.  

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5 de julho de 2016

As bobagens de nossas ideias inteligentes

No livro "A Tolice da Inteligência Brasileira", Jessé Souza mostra como se tornou senso comum a ideia de que a corrupção é um problema muito brasileiro e puramente estatal. Segundo ele:

...o mercado capitalista, aqui e em qualquer lugar, sempre foi uma forma de “corrupção organizada”, começando com o controle dos mais ricos acerca da própria definição de crime.

Criminosos são apenas os servidores corruptos ou batedores de carteiras, não o especulador financeiro que “às vezes arrasa a economia de países inteiros”. “Enquanto os primeiros vão para a cadeia, diz Souza, o segundo ganha foto na capa da revista The Economist”.

O autor lembra que, na verdade, o Estado é “o único lugar onde a corrupção ainda é visível como tal, e tem, portanto, alguma possibilidade de controle real”.

O raciocínio faz sentido se pensarmos que há duas grandes formas de roubar o dinheiro público. Uma é tirando dos cofres do governo. Esta é a mais conhecida, sempre divulgada amplamente pela grande mídia.

A outra forma de roubar verbas públicas acontece antes de elas chegarem aos cofres do Estado. É a sonegação, sempre ignorada pelos jornalões.

Segundo o Sonegômetro do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda, em 2015 foram sonegados R$ 539 bilhões, ou 9% do PIB. Este ano, até início de julho já eram 275 bilhões. E quem são os principais responsáveis por isso? Os gatos gordos do justo e imaculado mercado!

É por isso que Souza conclui:

Quem é feito de tolo aqui são partes significativas das classes médias e trabalhadoras ascendentes, muitas delas que defendem o Estado mínimo e o mercado máximo.

Leia também:
Sonegação pode, né Coração Valente?

A tolice de nossas ideias dominantes

“Este livro é uma história das ideias dominantes do Brasil moderno e de sua institucionalização”, diz Jessé Souza, em "A Tolice da Inteligência Brasileira" (2015).

Dois dos principais responsáveis por essas ideias que o autor considera nocivas seriam Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda, monstros sagrados da sociologia nacional.

Em “Casagrande & Senzala”, Freyre tornou a mestiçagem um valor positivo, devidamente aproveitado por Vargas para transformá-lo em redutor “de todas as diferenças, especialmente as de classe social e prestígio”.

Em seguida, Buarque apresentaria os conceitos de “homem cordial” e “patrimonialismo”, em que relações pessoais são utilizadas para transformar o Estado em uma máquina controlada por uma elite corrupta.

Em oposição, o mercado seria o lugar da concorrência limpa e justa. Como se pudesse haver corrompidos sem corruptores.

Segundo o autor, uma das teses centrais dessa “sociologia culturalista” afirma que nas sociedades periféricas a corrupção é estrutural. Como se esta não existisse nas sociedades centrais.

Outra ideia favorita dessa forma de pensar é a de que “as classes altas e médias são moral e cognitivamente superiores às classes populares”.

Enquanto isso, os efeitos desastrosos de séculos de escravidão e enorme desigualdade social são ignorados. E os conflitos de classe ficam ocultos pela ideia de que nosso maior problema é a corrupção e de que ela é sempre estatal.

Segundo Souza, somente assim é possível explicar “a tolice” dos que compram a “ideia absurda” de que é preciso “mais mercado no país do mercado mais injusto e concentrado do mundo”.

Talvez, ajude a explicar também porque os tolos não voltaram às ruas contra a corrupção.

3 de julho de 2016

O mito do inchaço da máquina pública

O excesso de servidores públicos é tema favorito de 11 entre 10 jornalistas, comentaristas, especialistas e outros vigaristas.

Mas, pelo menos em relação ao Poder Executivo federal, este “inchaço” não passa de um mito. É o que mostra um recente estudo de Antonio Lassance, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

Alguns dados:

Nos últimos dez anos, houve um expressivo aumento nas contratações de servidores. Mas seu atual número é similar ao de 1992.

Durante a década de 1990 até 2002, Collor e FHC substituíram servidores concursados por terceirizados e precarizados. Nesse caso, faça-se pelo menos esta justiça aos governos petistas. Sob sua gestão, foram realizados quase 25 mil concursos. Principalmente, para os ministérios da Educação, Meio-Ambiente e Saúde.

Outro procedimento escolhido como vilão é a nomeação dos cargos de direção (DAS), que podem ser ocupados por pessoas externas ao serviço público. O estudo mostra que mesmo nos níveis mais altos, onde não há cotas mínimas de servidores, a proporção de concursados fica, em média, acima dos 50%.

Quanto ao aparelhamento do Estado por “quadrilhas partidárias”, melhor procurar em outro lugar. Servidores com DAS filiados a partidos são apenas 13,1% do total. E mesmo nos altos escalões, só 66% possuem filiação.

A estes números, podemos juntar a informação de que 82% do déficit público atual representam despesa com juros, 13% são queda de arrecadação e apenas 5%, aumento da despesa pública.

Portanto, o tal “inchaço” é um mito alimentado por quem se aproveita da inegável ineficiência dos serviços públicos para defender um Estado cuja única eficiência continue sendo a que está a serviço do capital.

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