Doses maiores

31 de maio de 2015

Do pau-brasil à conquista da Lua

Dois casos envolvendo a sabedoria indígena. O primeiro está em artigo de Jorge Caldeira publicado na Folha, em 31/05.

No início do século 16, o francês Jean de Léry andava pela Guanabara quando encontrou um ancião tupinambá que lhe perguntou para que os brancos precisavam de tanto pau-brasil. O europeu explicou que aquela madeira alimentava um comércio que tornava alguns brancos muito ricos.

Diante disso, o velho indígena respondeu:


... agora vejo que vós outros sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que, depois da nossa morte, a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados.

O segundo relato é do livro “Sapiens – Uma Breve História da Humanidade”, de Yuval Noah Harari.

Em 1969, astronautas americanos ensaiavam uma das missões à Lua em um deserto do oeste estadunidense. No local, havia alguns indígenas. Quando um deles soube para onde os homens da NASA pretendiam ir, pediu-lhes que levassem um recado para quem quer que encontrassem em solo lunar. Disse algumas palavras em sua língua, obrigou os astronautas a decorá-las, mas se recusou a traduzi-las.

De volta a sua base, os astronautas conseguiram alguém para traduzir a mensagem indígena. Em meio a risos, o intérprete revelou:

             
Não acredite em uma única palavra do que essas pessoas estão lhe
              dizendo. Eles vieram roubar suas terras.

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28 de maio de 2015

O reformismo petista já não pode ser reformado

O PT se aproxima de seu congresso nacional em profunda crise. Não só pelos graves problemas do governo federal, nem devido aos ataques dos conservadores. Há também os equívocos ligados à própria organização do partido.

Um dos mais grave erros desse tipo foi abordado em uma reportagem do Globo publicada em 24/05. A matéria fez um levantamento das teses que serão discutidas no congresso, em junho.

Um dos temas destacados é o Processo Eleitoral Direto (PED), adotado a partir de 1999 e no qual os dirigentes petistas são eleitos diretamente pelos filiados. Seis das setes teses apresentadas propõem alterar radicalmente este processo, apontando para seu abandono.

Na verdade, o PED contribuiu para transformar o PT em uma máquina burocratizada e distante da militância. Trouxe para o partido o que a democracia formal tem de pior. Não à toa, os documentos internos falam em despolitização, abuso de recursos financeiros, filiações em massa e compra de votos.

Tentando superar esses problemas parte do coletivo partidário parece defender uma espécie de reforma política interna para resgatar o antigo partido militante. Mas para isso, seria preciso romper com o projeto que inspirou a própria criação do PED.

Um projeto baseado na crença de que é possível conciliar os interesses de explorados e exploradores, oprimidos e opressores em um dos países mais injustos do planeta.

Uma visão tão equivocada que levou a uma política econômica incapaz de romper com o neoliberalismo. E não só exigiu uma prática que afundou o partido no lamaçal da política institucional. Também tornou impossível reformar o reformismo falido do PT.

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27 de maio de 2015

A antiga conspiração das facas

Acumulam-se provas de que há uma conspiração por trás dos recentes ataques a faca na cidade do Rio de Janeiro. Muito provavelmente, trata-se de um conluio composto por bandidos temerários e terríveis facínoras.

Entre seus ancestrais, os senhores de escravos. Os mesmos que administraram a abolição da servidão tão habilmente que mantiveram seus privilégios e arrancaram a seus ex-cativos toda possibilidade de encontrarem trabalho digno.

Em seguida, vieram os coronéis e o domínio pelo cabresto da ignorância e da crueldade. Os industriais foram os próximos. Graças aos primeiros são capazes de superexplorar nas cidades os que foram expulsos do campo por falta de lavouras e pastos de onde tirar seu sustento.

Da conjuração sempre participaram decisivamente todos os governantes. Democratas ou ditadores, jamais nenhum deles ameaçou os interesses dos proprietários de gente, dos parasitas de operários e dos vampiros de trabalhadores.

A proteger tão brutal conspiração, um aparelho policial criado para caçar fugitivos do cativeiro e aperfeiçoado no massacre de trabalhadores revoltados pela fome. Especializado na tortura e assassinato dos rebeldes ou simplesmente daqueles nascidos na pobreza.

Mas os encarregados de fazer o trabalho mais sujo não são os que portam facas, nem são somente ladrões de bicicletas. Também não se resumem às organizações chocadas nos serpentários em que se transformaram as prisões do País.

Realmente decisiva para o sucesso dessa mancomunação trevosa é a vergonhosa submissão de alguns animais que julgam habitar regiões superiores. São os urubus senis da mídia e os morcegos de morada antiga ou recente nos palácios e parlamentos.

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26 de maio de 2015

O que pode o Podemos e o que podemos nós?

A grande votação obtida pelo Podemos nas eleições municipais espanhollas merece ser comemorada. Em especial, o desempenho das candidatas à prefeitura apoiadas pelo partido em Madri e Barcelona. Nesta última, foi eleita prefeita Ada Colau, líder dos movimentos contra a onda de despejos provocados pela recessão.

Confirmada a vitória, uma foto dela passou a ser compartilhada aos milhares nas redes virtuais. Trata-se da imagem de Ada sendo presa pela polícia municipal que, agora, deverá comandar na condição de prefeita.

Mais que irônica, a foto retrata uma antiga contradição enfrentada pela esquerda que ocupa o controle dos governos. Ada conseguirá manter a linha combativa que a elegeu ou se tornará novamente prisioneira do aparato estatal, desta vez como comandante cujas ordens pouco valem?

Há muito tempo, sabemos que conquistar governos não significa controlar o poder. Este costuma ter seu núcleo duro localizado principalmente nos aparatos policial-militar e judiciário. Mas também conta com uma burocracia montada para servir ao poder econômico e sem qualquer vocação para atender os interesses da maioria explorada e oprimida da população.

Na Espanha não deve ser diferente. E é este o desafio que vai enfrentar o mais jovem partido de jovens da esquerda espanhola. Nascido da resistência popular às medidas recessivas dos últimos governos espanhóis, o Podemos caminha rumo às eleições gerais em condições de vencer. Mas se o objetivo final se limitar à conquista de votos, o Podemos poderá pouco.

Ainda assim, é preciso travar mais esta batalha. Cabe aos setores de esquerda aprenderem com Syriza e Podemos para avançar além das vitórias eleitorais e da administração dos negócios da burguesia.

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25 de maio de 2015

Da crueldade infantil à brutalidade penal

"Os fracos machucam os ainda mais fracos". Esta frase aparece no início do filme “Confissões”, de Tetsuya Nakashima. O principal tema dessa produção japonesa de 2010 é a crueldade de que as crianças são capazes.

A frase é uma boa definição do chamado “bullying”, muito frequente nas escolas. Mas o fenômeno diz mais respeito à perversidade do ambiente escolar do que à maldade infanto-juvenil.

Provavelmente, o bullying deva sua origem a uma escolarização inspirada nos monastérios, quartéis e hospícios. Por isso mesmo, grande produtora de pessoas reprimidas, brutalizadas e doentes. E não só entre alunos.

Educadores dentro e fora da família, na escola ou fora dela, assistem desesperados filhos e alunos se afastarem de seu alcance afetivo. E qualquer um que conviva com crianças sabe como pode ser desastroso quando algumas delas acabam abandonadas à sua própria crueldade.

Costuma-se dizer que ao invés de mais presídios precisamos de mais escolas. É a mais cristalina verdade. É exatamente por isso que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) procura lidar com os delitos infanto-juvenis com ênfase nas medidas educativas.

O problema é que a mesma lógica que jamais permitiu ao ECA funcionar como instrumento pedagógico mantém e aprofunda o caráter punitivo e opressor da maioria das escolas. Desse modo, a redução da maioridade penal só apressaria a transferência da sala de aula para a cela prisional.

Para muitos, não basta privarmos crianças, adolescentes e jovens de uma educação humana e emancipadora. Nem é suficiente que desistamos de sua dignidade. Também é preciso condená-los à brutalidade do sistema penitenciário. Destino recorrente dos mais fracos entre os fracos.

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24 de maio de 2015

Algumas braçadas contra a corrente conservadora

Todo mundo ficou sabendo da condenação à morte de Dzhokhar Tsarnaev. Ele é um dos acusados pelo atentado que matou três pessoas, e feriu mais de 250 na Maratona de Boston, cidade do estado americano de Massachusetts, em 2013.

O que quase ninguém divulgou é que o jornal “Boston Globe” fez uma pesquisa e descobriu que apenas 15% dos entrevistados aprovavam a pena de morte para o condenado. E em nível estadual, só 19% aceitaram a pena capital. Além disso, os pais de Martin Richard, garoto morto no atentado, escreveram uma carta ao Departamento de Justiça se posicionando contra a pena capital.

No Brasil, Rio de Janeiro, houve grande comoção com o assassinato de um médico na Lagoa Rodrigo de Freitas, esfaqueado por um rapaz de 16 anos. A justeza da revolta causado pelo trágico episódio não diminui o oportunismo com que a maioria da grande imprensa utiliza o caso para defender a redução da maioridade penal. Certamente por isso, foi dado pouco destaque à declaração da a ex-mulher da vítima, que condena a proposta.

A última notícia vem de um lugar inesperado. Ariana Miyamoto, a mais recente Miss Japão, é filha de uma japonesa e um negro americano. Por sua origem mestiça, ela é o que se costuma chamar no Japão de “hafu”, do inglês half, "metade". Uma vez eleita, Ariana deixou de lado as tradicionais dicas de beleza para denunciar o racismo contra pessoas como ela entre os japoneses.

Notícias como essas representam apenas algumas braçadas contra a forte corrente conservadora atual, mas seu vigor e coragem nos ajudam e incentivam a continuar nadando.

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21 de maio de 2015

Homofobia e fotossíntese no inferno

De volta ao livro “Sapiens – Uma Breve História da Humanidade”, de Yuval Noah Harari. Para aqueles que gostam de classificar alguns comportamentos humanos como “biologicamente anormais”, o autor propõe o seguinte raciocínio: 

Como podemos diferenciar aquilo que é biologicamente determinado daquilo que as pessoas apenas tentam justificar por meio de mitos biológicos? Um bom princípio básico é “a biologia permite, a cultura proíbe”. A biologia está disposta a tolerar um leque muito amplo de possibilidades. É a cultura que obriga as pessoas a concretizar algumas possibilidades e proíbe outras. A biologia permite que as mulheres tenham filhos – algumas culturas obrigam as mulheres a concretizar essa possibilidade. A biologia permite que homens pratiquem sexo uns com os outros – algumas culturas os proíbem de concretizar essa possibilidade. 

E ele ainda reforça com exemplos bem didáticos: 

Nenhuma cultura jamais se deu ao trabalho de proibir que os homens realizassem fotossíntese, que as mulheres corressem mais rápido do que a velocidade da luz, ou que elétrons com carga negativa atraíssem uns aos outros.
 
Na verdade, arremata Harari, os conceitos de “natural” e “não natural” não são tirados da biologia, mas da teologia cristã. E esta atribui a nossos órgãos finalidades bem específicas. Algo que se choca frontalmente com tudo o que sabemos sobre a evolução da vida.

Ninguém é obrigado a acreditar nas ciências biológicas. Mas, da mesma maneira, ninguém merece que lhe berrem nos ouvidos sua pretensa “anormalidade”, ou simplesmente resolvam combatê-la com violência física.

Para quem a evolução das espécies não vale, deveria valer a evolução cultural. Se nem isso for possível, pode ir fazer fotossíntese no inferno.

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O Estado de Bem-Estar Natural


Diante do constante e crescente desrespeito aos direitos indígenas, nada como ler “Saberes indígenas, muito além do romantismo”, de Ricardo Cavalcanti-Schiel.

O artigo publicado no site de Carta Capital, adverte contra o equívoco de adotar as sociabilidades indígenas como manifestação de uma pureza quase angelical. Algo que só faz trocar o desprezo por suas tradições por seu “embalsamamento” cultural, como diz o autor.

Muito mais importante é verificar como essas tradições se impõem no cenário político de alguns países. Principalmente, na América Andina. O texto cita, especificamente, a experiência equatoriana, cujo movimento indígena:


...inspirou em boa medida a elaboração da última Constituição do país, referendada em 2008. Nela, pela primeira vez no mundo, a Natureza foi reconhecida como sujeito jurídico de direito, para que em seu nome e da sua integridade, seja defendida como parte interessada em qualquer ação judicial visando garantir sua “existência, manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos” (Art. 71).

Compare-se esta disposição jurídica ao que aconteceu em relação à 14ª Emenda da Constituição estadunidense, que trata de direitos humanos. Em 1886, a Suprema Corte americana decidiu que as empresas do país seriam consideradas como pessoas para efeitos dela.

E esta interpretação costuma ser utilizada pelos ianques para justificar o direito que teriam suas gigantescas corporações de espalhar destruição ambiental nos Estados Unidos e no restante do mundo.

Não à toa, Cavalcanti-Schiel afirma que:

Há quem acredite que o socialismo e o Estado do Bem-Estar Social teriam sido inventados alguns séculos antes se os europeus, além das batatas, tivessem levado as ideias.

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20 de maio de 2015

Os campeões dos crimes com causa e sem punição

No programa de TV do PSDB, ontem, Fernando Henrique afirmou o seguinte sobre os governos petistas: “... nunca se roubou tanto em nome de uma causa”.

Uma das possíveis interpretações da declaração poderia ser a de que há duas categorias de roubos. Neste caso, os tucanos estariam incluídos no quesito daqueles “sem causa”, certo? De forma alguma.

Nada, incluindo “mensalão” e “petrolão”, chega perto da roubalheira que foram as privatizações promovidas pelo governo Fernando Henrique. Esta é a grande causa abraçada pelos tucanos: entregar à ditadura do livre mercado o patrimônio estatal e público. Atrelar a economia ao dólar, desindustrializando o País, disparando o desemprego e agigantando a dívida pública. Trocar a hiperinflação pela hiperdesigualdade social.

Depois disso, tivemos o escândalo do cartel de equipamentos ferroviários em São Paulo. E mais recentemente, os R$ 2 milhões que o tucano Beto Richa teria desviado da Receita, só para citar alguns casos.

De qualquer maneira, no mesmo programa de TV, Aécio Neves declarou que nas eleições passadas, “o Brasil escolheu um governo” e uma oposição. E que o PSDB vai respeitar o “voto de cada brasileiro”. Ou seja, o impeachment de Dilma está descartado. E isso pode indicar que os tucanos também têm o que temer.

Iniciar um processo de investigações pela derrubada do governo petista poderia causar surpresas bem desagradáveis para o PSDB. Afinal, o que não faltam são evidências de que os esquemas utilizados pelos petistas já serviram e ainda servem aos tucanos.

O risco seria o PSDB perder o título de campeão absoluto na categoria dos crimes sem punição.

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19 de maio de 2015

A internete, segundo Castells e segundo os monopólios

Manuel Castells é um sociólogo espanhol, especialista em redes virtuais. Em entrevista concedida à Folha em 19/05 fez algumas observações interessantes. Uma delas refere-se à agressividade verificada entre os participantes de meios como facebook ou twitter. Ele introduz a questão dizendo que a:
... comunicação social estava monopolizada até hoje ou pelo poder político, ou pelo poder econômico. Agora, a internet permite às pessoas comunicar-se diretamente sem passar por esses controles...
No caso brasileiro, Castells avalia que em nossa sociedade a agressividade “sempre existiu”.

Difícil discordar. Somos reconhecidamente um dos países mais violentos do planeta. Mas o sociólogo conclui, arriscando uma afirmação duvidosa: “A única coisa que a internet faz é expressar abertamente o que é a sociedade em sua diversidade. Trata-se de um espelho.”

Esta última afirmação conjugada àquela primeira dão a impressão de que a rede mundial é um meio neutro. Ela apenas permitiria a livre confrontação de ideias que são geradas fora dela. E isso está longe de ser verdade.

Não custa lembrar uma pesquisa realizada em 2011 pela
agência JWT. Seus dados indicavam que os grandes portais e mecanismos de buscas eram responsáveis por 75% de “pageviews” no Brasil.
Estamos falando de UOL, Terra, iG, Globo, Google, YouTube.

São poderosos meios que pautam grande parte do conteúdo da internete com seu conservadorismo, omissões e mentiras. Armam bolhas de algoritmos em que o preconceito e a intolerância são reproduzidos e realimentados e cultivam a mais vulgar alienação consumista.


O título da entrevista é “Simpatia do brasileiro é um mito, diz sociólogo Manuel Castells”. A livre expressão da internete também é, mestre Castells.

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Redes sociais não fazem revolução

17 de maio de 2015

Fator Previdenciário ou “vamos ver quem é mais neoliberal?”

O fim do Fator Previdenciário aprovado pela Câmara ganhou as manchetes dos jornais. Os neoliberais berram: “A medida vai destruir as contar públicas. A Previdência vai quebrar”. E os petistas vergonhosamente integram este coro.

Na verdade, a Previdência só é deficitária porque banca as aposentadorias dos servidores públicos, cujo pagamento é obrigação do Tesouro Nacional. Mas o Tesouro Nacional sangra diariamente R$ 980 milhões com uma dívida pública totalmente ilegítima.

Para quem não sabe ou não se lembra, o Fator Previdenciário foi um golpe aplicado em 1999. Esse cálculo que retarda a concessão da aposentadoria para quem já tem direito foi aprovado pelo governo do PSDB e PFL (atual DEM).

Agora, PSDB e DEM (ex-PFL) foram os grandes responsáveis pela aprovação da medida, apenas para desgastar o governo do PT.

Mas esta farsa toda não é nova. Em junho de 2010, o Congresso já havia aprovado o fim do Fator Previdenciário, também por iniciativa da oposição de direita. Lula não teve dúvidas. Vetou.

Agora, é bem provável que sobre para Dilma decidir se veta ou não. Só que Lula teria mudado de ideia. Seria contra o veto. O que teria mudado? As contas da Previdência teriam melhorado?

Nada disso. O lulismo parece temer o desgaste que virá com as medidas neoliberais que seu governo está implantando. Quer fazer um agrado às centrais sindicais, com medo da provável reação furiosa dos trabalhadores diante da recessão econômica que se aproxima.

Portanto, não é verdade que essa briga toda não é ideológica. O esforço é para ver quem aplica melhor as ideias neoliberais. Deve dar empate...

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15 de maio de 2015

O racismo e seu avesso definitivo

Em 13/05, Flávia Oliveira publicou “Atestado de africanidade” no Globo, revelando sua condição de descendente “do povo balanta, da Guiné-Bissau, país da África Ocidental”.

Ela aproveitou para lembrar que conhecer a própria ancestralidade é outro dos direitos negado à grande maioria do povo negro. Diferente daqueles cuja origem europeia está bem documentada e é lembrada orgulhosamente, da “africanidade, emerge o silêncio constrangedor”, diz a jornalista.

Um silêncio que inclui a própria identificação familiar da maioria dos escravos brasileiros. Muitos deles ou nem tinha sobrenome ou recebia o de seus proprietários. Estes eram praticamente todos portugueses e batizavam seus cativos com “Silva”, “Carvalho”, “Oliveira”...

Mas o silêncio também cerca aqueles de origem africana que já deveriam ter saído do anonimato há muito tempo. Trata-se dos inúmeros intelectuais negros completamente ignorados pela academia.

É o que mostra Mariana Tokarnia no artigo “Intelectuais negros estão fora da bibliografia, criticam especialistas”, publicado na Agência Brasil. O texto lembra nomes esquecidos como Abdias Nascimento, Clóvis Moura, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Jurema Werneck e Sueli Carneiro.

O avesso do anonimato ancestral do povo preto é a interdição da notoriedade para seus filhos mais brilhantes. E como não faltam avessos no racismo brasileiro, há também a inversão em que vidas negras tornam-se estatísticas da violência urbana.

O Mapa da Violência 2015 conclui que o Estatuto do Desarmamento teria salvado 160 mil vidas desde sua implantação. Mas o número de pessoas negras mortas por arma de fogo aumentou 14,1% entre 2003 e 2012, enquanto o de vítimas brancas caiu 23%.

E chegamos ao mais definitivo e universal dos avessos do racismo. O da morte.

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Abolição: a liberdade como castigo

14 de maio de 2015

Abolição: a liberdade como castigo

É uma vitória do Movimento Negro a imposição do 20 de Novembro em lugar do 13 de Maio no calendário de celebração da luta contra a escravidão. A data que lembra a assinatura da Lei Áurea omite que os ex-cativos foram jogados na marginalidade do sistema produtivo.

Um século depois da Abolição, em 1992, o sambista Geraldo Filme lembra sua infância. Nos anos 1930, em São Paulo, ele frequentava o Largo da Banana, um dos berços do samba paulistano:
 

Lá no Largo da Banana, na Barra Funda... a rapaziada, o ordenado era pequeno, o soldo era pequeno. Então, (...) por cada tantos cachos carregados, eles ganhavam um. Então eles colocavam ali na praça para o comércio. E na hora em que folgavam um pouquinho, eles armavam um samba.        
 
A beleza da arte negra surgindo em meio a tantas dificuldades não diminui a feiura da superexploração que a inspira. No centro capitalista do País, parte dos miseráveis salários que os negros recebiam era paga com a mais barata das mercadorias.

Desde então, a realidade mudou muito. Mas a injustiça social de corte racista persistiu. Mais de 95% dos empregos criados nos últimos 10 anos são de qualidade e remuneração baixas. A grande maioria de seus ocupantes são mulheres e jovens. Elas e eles, quase todos negros.  

Estes setores serão os maiores atingidos pela liberação da contratação terceirizada. Também estão entre as principais vítimas das medidas neoliberais que vêm sendo aprovadas pelo Congresso por iniciativa do governo.

E as vitórias da resistência negra continuam a ser ofuscadas pela tradição inaugurada pela princesa branca. A da liberdade como punição.

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13 de maio de 2015

O lulismo faz escola na Europa do Sul

Vários analistas da esquerda dizem que o Brasil caminha rumo à Europa do Sul. Referem-se à crise que atinge os trabalhadores de Portugal, Espanha e Grécia, com forte recessão, desemprego elevado, direitos sociais cassados, salários miseráveis e dívidas públicas enormes.

Mas Sara Granemann acrescenta a esta perspectiva outro elemento. A professora da Escola de Serviço Social da UFRJ afirmou em recente entrevista ao portal da EPSJV/Fiocruz que os países da Europa do Sul estão sofrendo um processo de “latinoamericanização”.

Mais especificamente, trata-se de adotar o modelo lulista, que, segundo Sara, fez:
 


... do fundo público destinado às políticas sociais elementos de acumulação para o capital bancário e financeiro. Transforma tudo isso em dinheiro. Então vai desmontando os aparatos de realização da política social: desmonta o hospital, mas para aquele que não pode, atende gratuitamente. E para o outro? Para aquele que está desempregado e não poderia pagar, dá o emprego (...), e daí considera-se que ele tem condições de pagar pela consulta. Então, ao transformar a política social num direito monetarizado, esse dinheiro volta para o capital, volta para os bancos. A Bolsa Família não é um conjunto de serviços que o pobre no Brasil pode utilizar: não é escola, não é alimentação na escola, não é o hospital de boa qualidade. É um dinheiro que ele recebe via banco e que, individualmente, é uma miséria, mas aquilo que entra no banco é, na totalidade, um montante muito considerável.

O depoimento é importante para ajudar a compreender como o lulismo preparou a atual ofensiva conservadora, mantendo intactos os interesses dos poderosos e desarmando os explorados.

Não deixe de ler a entrevista,
clicando aqui.

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Sobre traições amorosas e projetos políticos

12 de maio de 2015

Ser mãe é padecer. Raramente, no Paraíso

Às vésperas do Dia das Mães, Bruno Rizzato publicou no “Jornal Ciência” artigo sobre a criadora da data tão festejada. Trata-se de Anna Jarvis, que criou a comemoração em 1914 para se arrepender logo depois.

A intenção de Anna era honrar a memória de sua mãe, que atuou como enfermeira durante a Guerra Civil estadunidense e cuidou de feridos em ambos os lados do conflito, estabelecendo laços de amizade entre mães nortistas e sulistas.

Diante da enorme exploração comercial que tomou conta da data, Anna passou a fazer uma campanha por sua abolição. Mas morreu em 1948 pobre, doente e frustrada.

O pior da maternidade, porém, não se limita ao aspecto consumista que cerca sua celebração. Desde, pelo menos, Simone de Beauvoir, sabemos que ser mãe pode tornar-se uma imposição opressora. Mulheres devem parir, amamentar, cuidar, educar. Abandonadas pelo machismo e, obrigatoriamente, felizes.

Felizmente, em 1960, surgiu a pílula anticoncepcional para aliviar esta carga. Mas também vem servindo para programar o melhor momento da gestação. Destino que todo "verdadeiro ser do sexo feminino" deve cumprir sob pena de jamais se realizar plenamente.

Mais recentemente, surgiu o ramo lucrativo das clínicas de fertilização assistida. Tratamentos caros e cada vez mais empenhados em prometer aos futuros pais crianças de genética perfeita.

A grande maioria das mulheres não pode ter acesso a procedimentos tão sofisticados. Principalmente às pobres e pretas, restam as gravidezes indesejadas, os partos em condições humilhantes, a criminalização do aborto.

Não à toa, Deus expulsou Adão e Eva do Éden, destinando a ela um castigo adicional: o parto com dores. Padecer, sempre. No Paraíso, quase nunca.

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11 de maio de 2015

No auge de nossa evolução, a fofoca

“Sapiens – Uma Breve História da Humanidade” é o mais novo best-seller de divulgação científica. Seu autor é o israelense Yuval Noah Harari. O livro é muito bem escrito, mas a leitura está só no início. Por isso, os trechos abaixo são apenas um aperitivo.

Em um deles, Harari discute a importância da linguagem na predominância de nossa espécie sobre as outras. Segundo ele, uma das teorias nesse sentido destaca não apenas a capacidade humana de “partilhar informações sobre o mundo”. Mais importante seriam as informações que precisavam ser comunicadas sobre os próprios humanos, e não apenas sobre seus predadores e presas.

Desse modo, continua o autor:


... não é suficiente que homens e mulheres conheçam o paradeiro de leões e bisões. É muito mais importante para eles saber quem em seu bando odeia quem, quem está dormindo com quem, quem é honesto e quem é trapaceiro.

A título de comparação, o livro lembra que os macacos também “mostram um ávido interesse” por “informações sociais”, mas eles teriam dificuldade para “fofocar de fato”. Já “os sapiens modernos”, adquiriram, 70 milênios atrás, as habilidades necessárias para fofocar “por horas a fio”.

A explicação soa simplista. Mas a realidade com que nos deparamos atualmente parece confirmá-la.

É inegável que nossa espécie atravessou centenas de séculos superando obstáculos, erguendo e destruindo monumentos, firmando-se como senhora absoluta do planeta. Aparentemente, no entanto, toda essa trajetória gloriosa vai terminando de forma patética.

O auge de nossa evolução seria representado por conquistas como facebook, twitter, whatsapp e reality-shows. Formas extremamente sofisticadas e ágeis de fazer mexericos e intrigas.

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8 de maio de 2015

Sobre traições amorosas e projetos políticos

As medidas neoliberais propostas pelo governo petista começam a ser aprovadas no Congresso Nacional. O clima na esquerda não poderia ser pior.

Mas, a rigor, é errado dizer que Dilma Roussef traiu aqueles que apoiaram sua reeleição. Pelo menos, em relação à militância de esquerda mais atenta e experiente.  

Tudo o que o lulismo construiu obrigava a presidenta a fazer o que vem fazendo. Os principais dogmas neoliberais jamais foram desrespeitados nos três mandatos petistas. Não seria agora, na defensiva, que isso aconteceria.

Quem define bem essa situação é Marcelo Carcanholo. Em entrevista à edição 39 da Revista POLI, da Fiocruz, o professor de Economia da Universidade Federal Fluminense é bastante explícito:


Existe, hoje, uma falsa polarização. Sem dúvidas existe uma polarização do ponto de vista político, mas do ponto de vista da estratégia de desenvolvimento econômico não há polarização alguma. O que o neoliberalismo fez, desde os anos 1990 até hoje – porque nesse período o que mudou foi só a roupagem –, foi aprofundar a condição dependente da economia brasileira. As reformas estruturais ampliaram e criaram mecanismos que levam à transferência do valor produzido aqui, que na verdade é realizado e acumulado nas economias centrais fora daqui.

A leitura do depoimento vale pela clareza do raciocínio. Ajuda a superar paixões que descambam para insultos pessoais ou reações fanáticas guiadas por cega devoção.

Uma piada popular sobre traições amorosas afirma que o pior não é ser corno. O pior são os comentários. Mas os militantes que fizeram campanha para reeleger Dilma têm todas as condições de saber que não são eles os principais alvos das más-línguas.

Leia a entrevista,
clicando aqui

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O PT e o moralismo dos sinais de trânsito

6 de maio de 2015

O PT e o moralismo dos sinais de trânsito

Célio Turino publicou na Carta Capital “Elementos para uma nova política econômica”. O artigo discute alternativas ao ajuste neoliberal que o governo Dilma considera ser a única saída.

Mas um trecho diz muito sobre a condição moral a que chegaram os petistas e seu governo:


... cabe levar em conta o fato de que esta política de Aperto Fiscal, que já dura 20 anos, foi implementada após ter recebido referendo prévio; seja em 1994, com o Plano Real e a eleição de Fernando Henrique Cardoso, seja em 2002, com a “Carta aos Brasileiros”, apresentada antes da primeira eleição de Lula e mesmo em 2010, quando houve um prolongamento deste acordo com a sociedade. Ocorre que na campanha de 2014 a candidata Dilma sinalizou outra política econômica, sobretudo no segundo turno, quando buscava apoio popular e, depois de reeleita, aplicou o oposto, em um giro de 180 graus.
 
Por dedução, o “estelionato eleitoral” cometido pela presidenta só encontra algum paralelo com o confisco da poupança determinado por Collor de Mello, 25 anos atrás. Uma comparação que desmoraliza qualquer time e sua torcida organizada.

Não à toa, as gangues da direita berram palavras-de-ordem com pretensões éticas que não passam de moralismo rasteiro. Confirmam o que disse Charles Dickens, ao definir o moralista “como um sinal de trânsito que indica para onde se pode ir, mas ele mesmo não vai”.

Moral da história: quando as medidas propostas pelo governo finalmente fizerem efeito, não haverá sinal de trânsito que oriente o PT. Resta a esperança de que outros setores de esquerda saibam encontrar ou reencontrar caminhos próprios e independentes.

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O violino petista e o maestro imóvel

Entre a imaturidade inconsequente e a intolerância senil

Acreditar que nossa vida social está condenada a existir de um único modo. Que ela se limita a algumas possibilidades. Eis o que os conservadores e reacionários tentam nos fazer crer a todo momento. Conceitos históricos congelados fazem a alegria deles.

É o caso da infância. Nem sempre ela foi considerada um momento específico da vida humana. Somente a partir da Idade Média, nossos “filhotes” passaram a ser chamados de crianças. Até então, eram tratados como adultos não crescidos.

O reconhecimento dessa fase de nosso amadurecimento, porém, não implicou necessariamente um tratamento mais delicado. Os castigos físicos, incluindo pesadas surras de açoite, foram adotados como necessidades pedagógicas até muito pouco tempo atrás.

Mas as diferenças em relação à ideia do que seja a infância não dizem respeito apenas ao tempo histórico. Também podem variar segundo as sociedades. Cronistas do período colonial, por exemplo, diziam que os índios Tupinambá jamais batiam em suas crianças.

Os mesmos cronistas notaram a influência dessa tradição indígena entre muitos dos colonizados. Algo considerado condenável por combinar-se mal com as crueldades típicas da ordem escravocrata.

Portanto, o tratamento diferenciado e cuidadoso dispensado às crianças é uma conquista, não apenas como produto da “evolução dos costumes”. Mas, principalmente, enquanto luta contra a violência parental e pela adoção de valores baseados no respeito da espécie humana por si mesma.

E é esse respeito que sofre ameaças cada vez que se propõe a redução da maioridade penal ou a defesa do castigo físico na educação infantil. Seus defensores costumam unir a mais imatura das inconsequências com a mais caduca das intolerâncias.

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5 de maio de 2015

Um exemplo da estupidez da censura

Em 1971, Chico Buarque se envolveu em uma polêmica com a censura da ditadura militar. Ela envolvia a música “Minha História”, bela versão para o português de canção da dupla italiana Dalla e Pallotini.

Seu verso inicial diz “Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar”, referindo-se ao filho de uma prostituta, e termina com “Me conhecem só pelo meu nome de menino Jesus”. Claro que a estupidez da censura vetou.

Chico, aconselhado por seu advogado, escreveu uma explicação:


O texto conta a história da mulher que se apaixona, como tantas outras, por um aventureiro que parte, como tantos outros, e do filho que nasce sem pai, como tantos outros. O poema – é um poema – difere dos demais pela maneira singela como a autora aborda o problema da mãe solteira. Nada de abortos, de fugas, nada de entregar o filho a um orfanato ou deixá-lo à porta de uma Igreja. A mãe, desesperada, alucinada, “com o olhar cada dia mais longe”, simplesmente dá ao filho o nome de Jesus. Um pouco por alucinação, mas também por ignorância. Um pouco por devoção, “por ironia ou por amor”. E um pouco, entende-se, para se comparar à Virgem Maria e se isentar de qualquer pecado. Finalmente temos o filho feito homem, igual a todos os homens, pequeno como todos os mortais, fraco demais para carregar às costas o nome de Jesus Cristo. E é só isso o poema.

Mas o censor manteve a proibição.

E é a este tipo de asneira que os saudosos da ditadura querem retornar.

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4 de maio de 2015

As mil e uma sombras da mesma história

Chimamanda Ngozi Adichie é uma jovem escritora nigeriana. Com apenas 38 anos, destaca-se com uma das mais importantes autoras africanas da atualidade.

Em vídeo que pode ser encontrado na internete, ela inicia uma palestra afirmando que pretende chamar a atenção para os perigos de “uma história única".

A escritora passa, então, a falar sobre narrativas que falam de certos setores sociais de um único modo. Negros são vagabundos ou criminosos. Africanos, povos atrasados. Mexicanos, bêbados e indisciplinados...

Para darmos razão a Chimamanda, basta lembrar o que faz nossa grande mídia. A um enorme setor social são reservadas apenas algumas variações de uma única história. Nos telejornais ou na imprensa escrita. Nas telenovelas ou nos filmes, os negros são retratados como marginais ou preguiçosos. Relatos que os tornam merecedores de figurar nas estatísticas como as maiores vítimas de mortes violentas, tortura ou aprisionamento ilegal.

Por trás de tudo isso, estão os monopólios dos meios de comunicação e produção cultural. Ou, como diz Chimamanda, o “nkali”:
É impossível falar sobre única história sem falar sobre poder. Há uma palavra, uma palavra da tribo Igbo, que eu lembro sempre que penso sobre as estruturas de poder do mundo, e a palavra é "nkali". É um substantivo que livremente se traduz: "ser maior do que o outro." Como nossos mundos econômico e político, histórias também são definidas pelo princípio do "nkali". Como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do poder.
São as trevas dos que se julgam maiores condenando à escuridão as mil e uma histórias coloridas dos humilhados e ofendidos.

Veja o vídeo aqui