Doses maiores

23 de dezembro de 2011

A partícula de Orfeu

A imprensa anda falando muito sobre a “partícula de Deus”. A confirmação de sua existência seria o elemento que falta a uma grande equação. Algo que explicaria de que modo nasceu e se desenvolveu o universo. Exagero.

“Partícula de Deus” é o nome de um livro de Leon Lederman, prêmio Nobel de Física. O título foi adotado pelo editor no lugar de “A Partícula maldita”, sugerido pelo autor em referência à dificuldade de encontrá-la. E uma escolha editorial ganhou um ar meio arrogante.

A necessidade de explicar e capturar a totalidade parece ser inerente ao ser humano. O fato é que nossa espécie contraria as leis da natureza e ainda tem consciência da própria finitude. É o que ganhamos por comer do fruto proibido.

Daí, o surgimento da religião, que vem do latim “religare”. Ou seja, aquilo que pode unir o que está desunido. Dar sentido ao que parece caótico. Há uns 200 anos, começaram a atribuir à ciência este papel.

Ambas são tentativas legítimas. O perigo é achar que serão totalmente bem sucedidas. Os melhores teólogos e cientistas sabem que sempre haverá mistérios.

Talvez, seja melhor adotar como modelo a arte. Em sua infância, Orfeu não conseguia suportar os barulhos do mundo. Por isso, tentou se isolar deles. Ao ver que seria impossível, resolveu organizá-los. Com ajuda das musas acabou criando a música.

O melhor fazer humano é como a música. Empresta beleza a sons confusos. Organiza e reorganiza o caos seguindo razão e sensibilidade. Não é só partícula nem apenas totalidade. É particularidade cheia de universalidade.

Feliz 2012!

Leia também: Amy e o sentimento oceânico

22 de dezembro de 2011

Presente de Natal para os banqueiros europeus

O Banco Central Europeu (BCE) aprovou um empréstimo de quase 490 bilhões de euros a 523 bancos afetados pela crise na Zona do Euro. São praticamente todos os bancos da região. Receberam um enorme presente de Natal. Os juros cobrados serão de 1% ao ano pelo período de três anos.

A idéia é que o dinheiro seja usado para compra de títulos da dívida da Espanha e da Itália. Papéis que estão pagando juros de mais de 5%. Ou seja, um lucro enorme garantido.

Desse modo, os bancos se recuperariam ao mesmo tempo em que ajudariam a bancar as dívidas públicas da região. Mas não há garantia de que isso venha a acontecer. Até porque o valor liberado mostra que a situação é ainda mais grave do que se esperava.

As previsões eram de um rombo de, no máximo, 250 bilhões de euros. É possível que vários desses bancos usem a dinheirama apenas pra se manter longe da falência.

Mesmo que os banqueiros façam o que o BCE espera, a única coisa certa é a continuidade da terrível situação social dos povos europeus. Para estes, o Natal já está sendo dos mais amargos.

Leia também: Os riscos de um apocalipse europeu

20 de dezembro de 2011

Os riscos de um apocalipse europeu

A crise econômica que atingiu a Europa nos anos 1930 preparou a catástrofe que viria com a 2ª Guerra. Também foi terreno fértil para o fascismo.

Algumas previsões sobre a atual crise européia não estão muito longe disso. É o que mostra reportagem de Diego Viana para o Valor, publicada em 16/12. Com o título de “O roteiro catastrófico da morte da moeda”, o texto diz:
Uma recessão severa, "talvez um cenário de depressão", nas palavras do economista Jens Nordvig, do banco Nomura, pode não ser o pior dos prospectos para a Europa nos próximos anos. Analistas de bancos como ING, UBS, Crédit Suisse e Citigroup publicaram nas últimas semanas estudos sobre o continente caso o euro seja abandonado por um país ou mesmo todos. As projeções incluem corridas bancárias, inflação explosiva, desintegração do comércio e graves retrocessos políticos. Dentre as consequências estimadas por Nordvig, figuram "o calote generalizado de dívidas soberanas e corporativos, crise bancária, fuga de capitais, inflação muito elevada. Em alguns países a política monetária ficaria impossível".
O fim do euro significaria o retorno às antigas moedas. Marcos, francos, escudos e pesetas voltariam a ser emitidos. Para a maioria dessas moedas, a desvalorização seria inevitável. A reportagem cita alguns exemplos:
... a nova moeda grega se estabeleceria em nível 57,6% abaixo da cotação atual do euro; a portuguesa, a 47,2%; e a espanhola, 35,5%. Países mais sólidos teriam desvalorizações bem menores: 6,8% na Áustria e 9,4% na França. A Alemanha é o único país com potencial de alta: 1,3%.
Ou seja, diz o texto:
... a quebra da união seria desordenada. Além de moratórias soberanas e corporativas - empresas com dívidas em euro não poderiam honrá-las -, corridas bancárias, como houve nos EUA em 1933 e na dissolução da Tchecoslováquia em 1993, têm 90% de chance de ocorrer nos países periféricos. Em caso de colapso total, os saques teriam risco de 30% nos centrais.
Um cenário que teria “probabilidade de quase 100% para Grécia, Portugal ou Irlanda”. Mas “mesmo Alemanha, França e Itália correm o risco de um desastre em suas relações comerciais, já que as linhas de financiamento dependem de bancos que correriam o risco de quebrar”, diz a reportagem.

E o texto conclui em tom quase apocalíptico:
Com o aumento do desemprego, o colapso do comércio e a explosão da inflação, a história ensina que o desfecho provavelmente descamba para a política. O colapso do euro representaria, segundo a equipe do UBS, um risco de 75% de regime autoritário, golpe militar ou guerra civil nos países periféricos. Mesmo os centrais correm esse risco (10%).
É o que dá colocar a economia acima da política. Infelizmente, algo cada vez mais constante em um sistema dominado pelo valor de troca.

Leia também: A Europa corroída por sua moeda

19 de dezembro de 2011

Turma da Mônica: sucesso comercial e consumista

A mais famosa personagem de Maurício de Sousa chegou à edição 500. Além disso, sua versão adolescente vendeu 500 mil exemplares da história em que ela e Cebolinha trocam um beijo apaixonado.

Para ter uma ideia, a DC Comics anda comemorando a venda de 200 mil exemplares do primeiro volume do "reboot" de "Liga da Justiça". Sem dúvida, Mônica e sua turma representam uma conquista comercial e tanto.

Já seu papel ideológico merece uma análise mais fria e rigorosa. É o que um texto escrito em 2009 tenta fazer. Clique aqui e leia.

18 de dezembro de 2011

Christopher Hitchens e o fanatismo ateu

Ele foi um dos maiores expoentes do chamado neoateísmo, ao lado de autores como Richard Dawkins, Sam Harris e Daniel Dennett. Seu livro "Deus Não É Grande" (Ediouro), de 2007, é um exemplo típico deste chamado neoateísmo: Deus não só não existe como a ideia de Deus é idiota, infeliz e faz mal à saúde física e mental.
As palavras acima são de Luiz Felipe Pondé, professor de Filosofia, em artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 17/12. Referem-se a Christopher Hitchens, morto dois dias antes. Resumem menos a idiotice da crença em Deus que a estupidez do ateísmo do próprio falecido.

Hitchens era daqueles ateus que envergonham muitos dos que não crêem. Nos faz parecer gente rancorosa e arrogante. Que considera os teístas ignorantes, supersticiosos, obscurantistas. Pensam que a ciência pode tudo explicar. Se não o fez ainda, um dia o fará.

Ciência e religião são duas formas com que o ser humano tenta explicar o universo e seu lugar nele. É natural que haja divergências entre elas, pois partem de pontos de vista diferentes. Mas trata-se de um debate legítimo e importante. Os problemas começam quando passam a ser usadas para justificar a dominação e a exploração de uma parte da sociedade pela outra.

Desde que a sociedade de classes passou a existir, as instituições sociais tendem a se aliar à classe dominante. Grande parte de seus dirigentes tem como objetivo maior fazer parte do grupo socialmente privilegiado.

As disputas envolvendo as igrejas entre si ou com outras áreas, como a academia, são reais e muito duras. Porém, têm pouco a ver com a busca pela revelação divina ou pela certeza científica absoluta. Representam muito mais uma briga para conquistar influência social e poder político e econômico.

É o caso de Hitchens. Ele apoiou a invasão do Iraque e a eleição de Bush, por exemplo. Ou seja, combatia um fanatismo em favor de outro. Que o Diabo o agüente.

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15 de dezembro de 2011

A nova classe média é a velha classe trabalhadora

Vira e mexe, a chamada nova classe média aparece em jornais, debates ou conversas informais. É a tal classe C em expansão. Não é para menos. A Fundação Getúlio Vargas diz que ela representa 55% da população brasileira. Ou pouco mais de 100 milhões de habitantes. É muita gente. Mas um pouco de rigor teórico é importante.

Foi o que procurou fazer a filósofa Marilena Chauí em palestra para o 1º Ciclo de Debates do Fórum Direitos e Cidadania, realizado em julho passado no Palácio do Planalto. Com o tema “Classe Média: como desatar o nó?” a professora falou a um público que, talvez, faça pouco ou nenhum uso de suas conclusões.

De acordo com Marilena Chauí, “a distribuição das classes pela sociologia e pelos institutos de pesquisa de mercado se faz com base na renda, na propriedade de bens imóveis e móveis, na escolaridade e na ocupação ou profissão”. Entretanto, diz ela, “há outra maneira de analisar a divisão social das classes. Aquela que se originou com o marxismo”.

Na opinião da filósofa, é costume identificar os segmentos da classe média como sendo aqueles ligados à ciência e à técnica. “Hoje, porém” diz ela:
...com a revolução eletrônica e a informática, as ciências e as técnicas tornaram-se parte essencial das forças produtivas e por isso cientistas, técnicos e intelectuais passaram da classe média à classe trabalhadora. Dessa maneira, renda, propriedades e escolaridade não são critérios para distinguir entre os membros da classe trabalhadora e os da classe média.
Ou seja, diminuição da pobreza e aumento do consumo podem levar ao conformismo e ao individualismo. Mas também significa mais gente em contato com as contradições do capitalismo. É o que mostram, por exemplo, as mobilizações em várias partes do mundo. Com grande participação de universitários, diplomados e profissionais especializados.

“Proletários, uni-vos!” continua valendo.

Leia também: Diplomados e conectados, uni-vos!

14 de dezembro de 2011

A falência da grande fábrica soviética

Em dezembro de 1991 a União Soviética chegava ao fim. Pouco a comemorar. Por um lado, nos livrávamos de um monstrengo que o senso comum aprendeu a identificar com socialismo e comunismo. Por outro, sua desaparição passou a simbolizar a vitória do capitalismo.

E em 1847, um documento da Liga Comunista, organização da qual participavam Marx e Engels, declarava:
Não estamos entre aqueles comunistas que pretendem destruir a liberdade pessoal, transformar o mundo em um imenso quartel ou em uma gigantesca casa de correção (...) não queremos de forma alguma trocar a liberdade pela igualdade.
A definição se adéqua bem ao que acabou se tornando a União Soviética depois que Stalin assumiu o poder. Na verdade, o imenso país passou a ser dirigido como se fosse uma grande fábrica. Sob forte disciplina, sem liberdade, com muita exploração e usando os heróicos atos da revolução de 1917 como ideologia para manter o poder. De socialismo, só o nome.

Tratava-se de um capitalismo fortemente dirigido pelo Estado e de um Estado sob controle de uma classe burocrática. Era o capitalismo burocrático de Estado. Seu fim foi uma espécie de falência da grande fábrica.

É o que defendem autores como o marxista inglês Tony Cliff, que escreveu “Capitalismo de Estado na União Soviética” em 1955. Infelizmente, ainda sem tradução para o português.

Até hoje, esta definição não é consensual na esquerda. Muitos seguidores de Trotsky, por exemplo, consideram que a União Soviética era um Estado operário degenerado. Mas já em 1951, a própria viúva de Trotsky manifestou posição diferente. Em carta à direção da IV Internacional, Natalia Sedova Trotsky afirmou:
Obcecados por fórmulas velhas e ultrapassadas, vocês continuam considerando o Estado stalinista como um Estado operário. Eu não posso e não acompanharei vocês nisto. Praticamente todos os anos depois do começo da luta contra a burocracia stalinista usurpadora, Trotsky repetia que o regime estava se movendo para a direita, sob as condições de uma revolução mundial morosa e a conquista de todas as posições políticas na Rússia pela burocracia. Repetidas vezes ele mostrou como a consolidação do stalinismo na Rússia conduzia ao agravamento das posições econômicas, políticas e sociais do proletariado, e ao triunfo de uma aristocracia tirânica e privilegiada. Se esta tendência continuar, disse, a revolução chegará a um fim e a restauração do capitalismo será alcançada.
Mas o pior mesmo são as viúvas do stalinismo. Cada vez mais numerosas e desavergonhadas. A reforçar uma visão autoritária e estatal do socialismo. É tudo o que a direita precisa.

Leia também: Soviéticos ontem, chineses hoje e a crise capitalista

Patinando à beira do abismo

Em “Tempos Modernos”, há uma cena em que Carlitos anda de patins usando uma venda nos olhos. Faz acrobacias sem notar que está à beira de um abismo. Felizmente, se dá conta antes de que o pior aconteça.

A grande mídia comemora o sucesso da Conferência do Clima da ONU. As principais vitórias seriam a renovação do Protocolo de Kyoto até 2017 e promessas de um novo acordo climático a partir de 2020.

Mas Rússia, Japão e Canadá se retiraram do Protocolo de Kyoto. Três dos maiores poluidores mundiais se juntam aos Estados Unidos, que já estava fora. Além disso, vários indicadores mostram que o desequilíbrio climático não pretende obedecer a prazos definidos em agendas políticas.

Outro motivo bobo de comemoração foi o recente anúncio do acordo na Zona do Euro, em Bruxelas. Os governantes de Alemanha e França impuseram sua receita aos 17 países integrantes da união monetária. Basicamente, mais neoliberalismo. Novas doses do veneno que já vem minando as economias da região.

O pior é que a saúde da economia alemã não anda tão bem assim. A dívida pública do país de Angela Merkel pode representar 185% de seu PIB e não os já elevados 83% admitidos. De qualquer maneira, as medidas anunciadas só começam a fazer efeito em meados de 2012. Muito provavelmente, tarde demais para evitar o pior.

Em Durban ou em Bruxelas, na economia ou na ecologia, o sistema dá sinais muito sombrios. Como o personagem de Chaplin, os líderes mundiais parecem não enxergá-los. Diferente dele, pode ser tarde demais para escaparem da queda.

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12 de dezembro de 2011

O leninismo de Gramsci

É costume opor Gramsci ao leninismo. O marxista italiano teria mostrado que os caminhos da revolução na Europa Ocidental seriam opostos aos que defendia Lênin. Afinal, o revolucionário russo vivia em um país sem instituições democráticas e organizações populares e operárias fortes.

Mas Lênin nunca ignorou isso. É o que mostra o marxista inglês Chris Bambery no texto “Hegemony and revolutionary strategy”. Segundo Bambery, Lênin teria dito que na:
...Europa Ocidental será muito mais difícil começar a revolução proletária do que foi na Rússia. Mas será muito mais fácil mantê-la e concluí-la.
Uma conclusão que necessariamente levaria a caminhos táticos diversos daqueles que Lênin defendeu para a Rússia. Por outro lado, tal situação não obrigou Gramsci a abandonar o leninismo. Ao contrário do que o stalinismo e a direita dizem, Lênin não era um líder inflexível.

O revolucionário russo não hesitava em abandonar seus pontos de vista caso se mostrassem equivocados. E fez isso várias vezes em sua vida política. Quando Gramsci se voltou para a tarefa de pensar a revolução na Europa usou essa flexibilidade para fazê-lo.

Mas em seus escritos políticos do período de 1921 a 1926, Gramsci reafirmou como tarefas principais do partido comunista:
a) organizar e unificar o proletariado industrial e rural; b) organizar e mobilizar em torno do proletariado as forças necessárias para a vitória da revolução e a fundação do Estado dos trabalhadores; c) colocar para os proletários e seus aliados a questão da insurreição contra o Estado burguês e a luta pela ditadura do proletariado, e guiá-los política e materialmente rumo à sua solução, através de uma série de lutas parciais.
Alguns podem dizer que tais posições são anteriores à vitória fascista que esmagou os comunistas. Situação que teria levado Gramsci a abandonar o leninismo.

A isso Bambery responde com o famoso artigo “As antinomias de Antônio Grasmsci”, de Perry Anderson, de 1976. O texto lembra que a ditadura do proletariado e a derrubada violenta do Estado burguês sempre foram centrais para o leninismo. E que tais princípios:
... nunca foram questionados por Gramsci. Pelo contrário, quando começou a sistematizar sua teoria na prisão, ele parece tê-los assumido como tão evidentes que mal se deu ao trabalho de citá-los.
Ou seja, Gramsci renovou dialeticamente Lênin, tal como este fez com Marx. Todos a serviço da luta dos trabalhadores.

O texto que traz as citações acima pode ser acessado na íntegra, em inglês, aqui.

Leia também: Gramsci leninista

11 de dezembro de 2011

A democracia corintiana e a nobreza dos meios

O documentário “Ser campeão é detalhe - democracia corinthiana” está disponível na internete. Vale a pena assistir. Principalmente, diante da triste coincidência entre seu lançamento e a morte de Sócrates. Ao lado de Casagrande, Wladimir, Biro Biro, Zenon, o “doutor” protagonizou um dos momentos mais bonitos do futebol mundial.

Sócrates explica que não se tratava apenas de revolta contra a concentração obrigatória. Todas as decisões eram tomadas de forma coletiva e igualitária. Como diz Sócrates no filme:
Eu era o único jogador de seleção no Corinthians. Meu voto tinha o mesmo peso que o do terceiro goleiro, do cara que limpava minha chuteira e tinha o mesmo peso do que o do diretor do clube. Era um pra um.
Num ambiente autoritário como o do futebol, e ainda sob a ditadura militar, tratava-se de um posicionamento radical. Mas não só isso. Em uma das finais que disputou pelo campeonato paulista, o time entrou em campo com a seguinte faixa:
Ganhar ou perder, mas sempre com democracia.
Era um desafio à própria lógica competitiva. O sacrifício dos fins em nome da nobreza dos meios. Algo inadmissível não apenas no meio esportivo. Desafiava a própria lógica daquilo que Florestan Fernandes chamou de “ordem social competitiva”, ao se referir ao capitalismo.

Felizmente, a ousadia foi recompensada com dois títulos paulistas numa das campanhas mais bonitas do clube em sua história. Bonita também foi a participação de Sócrates e seus companheiros no movimento pelas eleições diretas para presidente, entre 83 e 84. Infelizmente, a democracia acabou derrotada em ambos os movimentos.

No documentário, Juca Kfouri lamenta a ausência de herdeiros para um movimento tão importante. Mas os elementos e contradições que permitiram seu surgimento continuam presentes no esporte e na vida. A eles devemos acrescentar a necessidade de resgatar as lições da democracia corintiana.

A se lamentar o grande desfalque de Sócrates no time dos lutadores.

Leia também: Um médico que sofria as doenças de seu povo

9 de dezembro de 2011

O mundo nivelado por baixo

Desigualdade social extrema costumava ser uma especialidade do chamado “terceiro mundo”. Os maiores poluidores eram os países “desenvolvidos” do norte. Salários altos eram aqueles pagos na Europa e Estados Unidos. Violência contra pobres? Coisa de país atrasado do sul. De uns 20 anos pra cá, tudo isso começou a mudar. Pra pior.

Vejamos algumas notícias recentes. Manchete de O Estado de S. Paulo afirmava em 06/12: “Países ricos têm maior desigualdade em 30 anos”. A reportagem de Jamil Chade diz que no período, o fenômeno “atingiu até mesmo a Alemanha, Finlândia e Suécia, com alta de 4%”.

“Sem teto: De Marselha a Hamburgo, a caça aos pobres generaliza-se”. Este é o título de artigo de Christian Jakob publicado no site esquerda.net, em 07/11. Segundo o texto:
Várias cidades francesas adotaram medidas contra os mendigos nos últimos meses. Na Alemanha, a instalação de uma grade para impedir os sem-abrigo de pernoitarem debaixo de uma ponte de Hamburgo suscitou protestos. Por toda a parte, os sem-teto são empurrados para fora dos centros das cidades por cercas, multas ou milícias privadas.
Em 08/12, a Agência Reuters informava: “Os três maiores poluidores do mundo se opõem a acordo climático”. Entre estes, estão dois “novos ricos”: Índia e China. Ao lado dos Estados Unidos, emporcalham o planeta. E tal como os americanos, não estão nem aí para os problemas ambientais.

“Salários no Brasil estão mais altos do que em países ricos”, diz matéria do jornal Destak, de 05/12. Seria até uma boa notícia, se não dissesse respeito apenas a executivos e altos gerentes. Minoria que chega a ganhar 79% a mais do que nos Estados Unidos.

Tudo isso é produto do desenvolvimento capitalista tomando o planeta como câncer em metástase. Felizmente, tanta desgraça também leva a reações populares radicais. Anticorpos como o povo na Praça Tahrir, o Ocupe Wall Street, Indignados europeus, estudantes chilenos e a recente greve geral na Inglaterra.

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8 de dezembro de 2011

Até quando acerta, Dilma erra

Os jornais destacam o crescimento zero do PIB no terceiro trimestre deste ano em relação aos três meses anteriores. A notícia pode fazer a alegria da oposição de direita. Mas os números confirmam que a decisão do governo de cortar os juros em setembro fazia sentido.

Na época, os neoliberais chiaram. Apesar disso, a previsão de piora da situação econômica mundial estava correta. O problema é que a taxa de juros brasileira continua a ser a maior do mundo. Pagam quase o dobro do que paga o segundo colocado.

O abandono das áreas sociais se consolida. É o caso da recusa em destinar 10% do PIB para a Educação. Ou da redução nas verbas para a Reforma Agrária.

Por outro lado, o governo acaba de conseguir aprovar na Câmara Federal a transferência de novos recursos para o FMI. Medida que obrigará a elevar ainda mais a dívida interna. Aquela que paga os tais juros campeões mundiais.

Ou seja, até quando acerta, o governo Dilma erra. Mantém a trajetória petista de rendição ao essencial do neoliberalismo. Tal como fizeram os governos “socialistas” europeus recém derrotados nas urnas.

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6 de dezembro de 2011

A crise mundial e a síndrome da China

No final dos anos 1970, o filme “Síndrome da China” denunciou os perigos da utilização da energia atômica. O título referia-se à possibilidade de ocorrer um acidente radioativo de proporções gigantescas. O material nuclear penetraria no solo de forma tão poderosa que atravessaria o planeta e chegaria à China.

Em 16/11, Cláudia Trevisan publicou em O Estado de S. Paulo a matéria “FMI alerta sobre fragilidade de bancos chineses”. Segundo o texto, em relatório feito em parceria com o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional avalia que:
A atual configuração das políticas financeiras estimula alta taxa de poupança, elevados níveis de liquidez e um grande risco de má alocação de capital e formação de bolhas, especialmente no setor imobiliário.
Entre as medidas que o FMI recomenda está a redução da “influência governamental nas decisões sobre empréstimos”.

Os neoliberais costumam condenar a excessiva presença estatal na economia chinesa. Mas essa presença tem garantido os enormes lucros das empresas ocidentais instaladas no país. E índices de crescimento que vêm salvando a economia mundial do desastre completo.

Por outro lado, a matéria diz que:
...analistas manifestam preocupação com a provável elevação no volume de créditos podres nos balanços dos bancos chineses, em consequência da explosão de financiamentos registrada desde 2009.
Ou seja, de um lado, o modelo chinês, com seu capitalismo fortemente controlado. De outro, o neoliberalismo, que vem desregulamentando a economia ocidental há décadas. Mesmo assim, ambos apresentam os mesmos sintomas. Coisas como créditos podres e bolhas imobiliárias.

O que explica essa contradição? Muito provavelmente, o fato de que as leis capitalistas que vigoram em terras chinesas são as mesmas que andam fazendo estragos no resto do mundo. Os dois modelos divergem no varejo para se completar de um modo muito perigoso no atacado.

Em plena crise recessiva, a economia capitalista pode se revelar tão arriscada quanto a energia nuclear.

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5 de dezembro de 2011

Gramsci leninista

Muitos setores da esquerda marxista, e até de fora dela, consideram Lênin e Gramsci completamente opostos. Um seria o defensor da tomada do poder rápida e violentamente. O outro, partidário de sua conquista gradual e suave. O primeiro fazia política com um martelo. O segundo, com um bisturi. O russo seria revolucionário. O italiano, reformista.

Um texto do marxista inglês Chris Bambery mostra que não é bem assim. “Hegemony and revolutionary strategy” foi publicado em abril de 2007 na revista “International Socialism journal”. Trata-se de publicação editada por Alex Callinicos para a tendência Socialismo Internacional.

Bambery cita alguns trechos de Gramsci para mostrar que o italiano era não só revolucionário, como leninista. Seu leninismo estava exatamente na preocupação de adaptar criativamente o marxismo revolucionário às condições da Europa Ocidental.

O artigo traz citações de Gramsci bastante demonstrativas de sua concordância com a concepção de partido que os bolcheviques defendiam. Eis uma delas:
O princípio de que o partido lidera a classe trabalhadora não pode ser interpretado de maneira mecânica. (...) A capacidade de liderar a classe relaciona-se, não ao fato de que o partido se auto-proclame órgão revolucionário, mas ao fato de que realmente consiga, sendo parte da classe trabalhadora, ligar-se com todos os seus setores e impulsioná-la na direção desejada e favorecida pelas condições objetivas. Somente como um resultado de sua atividade em meio ao povo, ele virá a ser reconhecido como o seu verdadeiro partido (conquistando uma maioria). Somente quando esta condição for conquistada, o partido colocará a classe trabalhadora sob seu comando.
Em uma carta a seu companheiro de partido Amadeo Bordiga, Gramsci dizia que o reformismo da Segunda Internacional transformava as organizações socialistas européias em testemunhas passivas dos acontecimentos. Para ele, a organização partidária deve ser resultado “de um processo dialético, no qual o movimento espontâneo dos trabalhadores e o papel organizador e dirigente de seu centro político convergem”.

São elementos bastante característicos da concepção organizativa que Lênin defendia. Em breve, podemos voltar a esse texto para reforçar esta hipótese.

O texto na íntegra, em inglês, pode ser acessado aqui.

Leia também: Revolução é fúria e consciência

4 de dezembro de 2011

Sócrates brasileiro

"Ao tocar de calcanhar o nosso fraco, a nossa dor / Viu um lance no vazio, herói civilizador". É assim que um samba de José Miguel Wisnik, professor talentoso, compositor refinado e santista convicto, homenageia o “doutor”.

Mas nada melhor que lembrar algumas frases ditas pelo próprio Sócrates:
Perguntaram a Fidel se as universitárias cubanas estavam se prostituindo. Ele respondeu: “Não sei. Mas com certeza todas as prostitutas cubanas têm nível superior”. Não estou nem querendo isso. Só peço segundo grau completo.
Em entrevista, defendendo a obrigatoriedade de escolaridade de segundo grau para os jogadores de futebol - CartaCapital nº 152

A manipulação dos resultados de alguns jogos do Campeonato Brasileiro tirou dos manos não só a calma como também a única riqueza que podiam ter em mãos. Tirou o sonho e roubou a alegria simples e corriqueira de quem pouco pode sorrir. Desencadeou uma corrente de agonia que explode nas ruas e nos campos de futebol como uma forma de demonstrar que esse povo está vivo. Pouco articulado, mas vivo. E que um dia, não tenham dúvidas, há de lutar por alicerces mais resistentes para a sua existência. É, os manos estão se matando, mas, no fundo, estão mesmo é buscando uma brecha de cidadania em que possam se apoiar. Na verdade, eles estão sangrando. E muito.
Sobre brigas de torcidas após as denúncias envolvendo fraudes no futebol – CartaCapital - 02 de Novembro de 2005

Se temos de aplaudir alguém, são os nossos abnegados atletas. Muitos vivem, treinam, vestem-se e alimentam-se com pouco mais de um salário mínimo por mês.
Sobre os jogos panamericanos do Brasil – CartaCapital – 26/07/2007

Uma coisa é Copa do Mundo, outra coisa é o futebol. Futebol é essência. É o exercício dessa prática. Outra coisa é a Copa, que é um negócio, onde tem um monte de ladrão roubando dinheiro.
Brasil de Fato – novembro de 2007

É que neste país nada mobiliza e agrega mais que o futebol e poderá ser por meio dele que teremos os exemplos que determinarão os caminhos que devemos seguir para transformar nossa sociedade em algo mais humano e da qual possamos nos orgulhar.
CartaCapital – 13/03/2009

Leia também: Um médico que sofria as doenças de seu povo

Um médico que sofria as doenças de seu povo

Dos torcedores mais convictos costuma-se dizer que são “doentes”. Corintiano doente, por exemplo. Algumas torcidas fazem questão de reivindicar a condição de sofredoras. Talvez, a do Corinthians seja a que tenha mais direito a esse estranho orgulho. De 1954 a 1977, o time amargou um penoso jejum absoluto de títulos.

Depois, com a chegada do “doutor”, começou a fartar-se com banquete de títulos e conquistas. Entre estas, a inesquecível e valiosa “democracia corintiana”. Em pleno declínio da ditadura militar, o médico recém formado liderava seus companheiros na luta por liberdade dentro e fora do esporte.

Sócrates era doutor, mas parecia esquecer-se dessa condição tão valorizada numa sociedade elitista e conservadora. Médico, preferia misturar-se à maioria formada por doentes e sofredores. Um povo magro como ele, dado hábitos pouco saudáveis e, principalmente, cagando para uma carreira de sucesso.

Ambições? Só as coletivas e as plebéias. Era nacionalista também. Desde que a nação fosse alvinegra ou aquela que torce pela camisa canarinho sem esperar recompensas financeiras. Em nome dessa coerência jamais abandonou seu olhar crítico. Jamais “pipocou”, como dizem. Longe dos campos, continuou a mostrar elegância, precisão e talento em favor dos indefesos.

Seus companheiros e companheiras de doença e sofrimento agradecem, doutor!

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2 de dezembro de 2011

Ao século 21: comunismo é jogo

Amigos do século 21, não sei como nem porque, estou vivendo século e meio à frente daquele em que nasci. Ainda estou sob forte impacto do que testemunho. Mas posso dar muito boas notícias. Parece que finalmente a humanidade livrou-se de seus apertos materiais.

O trabalho duro, cansativo e aborrecido já não existe. Problemas sociais como pobreza, exploração, opressão e criminalidade também são raros. Aos poucos, a civilização parece ter encontrado um ponto de equilíbrio ecológico. Não se trata de harmonia perfeita, mas nossa relação com fauna e flora já não é marcada pela destruição. Acho que finalmente chegamos ao tal do comunismo.

No entanto, ainda há muita coisa que não consigo entender. Entre elas, a vida social. Quando sonhávamos com uma sociedade livre, era costume pensarmos em menos regras e leis. Mas não é isso o que vejo por aqui. São inúmeros os regulamentos e normas. Eles existem para quase tudo o que se faz. E há uma enorme variedade deles para cada coisa.

Mas o mais incrível é que nada disso significa menos liberdade. Ao contrário, as pessoas são livres para escolher as regras que bem entenderem desde que combinem com as outras. E tais combinações podem envolver tanto a forma como calçar os sapatos, como de que modo se deve tocar certa canção.

Pelo que entendi, a vida social é um grande jogo que se joga aos pares, em trios, quartetos, e envolvem até assembléias inteiras. E tudo isso sem a obsessão competitiva que marcou tanto os séculos passados. Ainda não aprendi direito a viver desse jeito. Mas é muito divertido.

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