Doses maiores

29 de julho de 2011

Amy e o sentimento oceânico

A morte de Amy Winehouse colocou o consumo de drogas nas manchetes. Prevalece o tom moralista e alarmista, claro.

Mas, a sessão “Logo” do Globo, de 28/07, trouxe análises interessantes. O tema era a relação entre o uso de drogas e a criação artística. Um artigo de Marta Mestre lembrou a idéia freudiana de “sentimento oceânico”. Conceito que aparece no livro “O mal-estar na civilização”, de Freud.

Trata-se de um sentimento relacionado à experiência uterina. Nesta fase, o bebê ainda não conseguiria perceber a diferença entre ele e o mundo. Na barriga da mãe, as necessidades de nutrição, por exemplo, eram automaticamente atendidas. Fora dela, passa a valer o popular “quem não chora, não mama”.

Antes dessa descoberta traumática, tudo parecia ser uma coisa só. Daí, o tal “sentimento oceânico”. Mas, Freud acha que essa sensação pode ser recuperada. Principalmente, através de experiências eróticas, estéticas, religiosas e aquelas provocadas pelo uso de drogas.

O próprio Freud foi consumidor de cocaína. Chegou a recomendar a substância a seus pacientes. Mudou de idéia diante dos riscos de dependência.

Essa hipótese explicaria a impossibilidade de vivermos sem fazer uso de substâncias que alterem nosso estado mental. Da cachaça e o café ao crack e a cocaína.

É verdade que esse anseio vem sendo aproveitado pelo sistema de dominação. São as religiões opressoras, o narcocapitalismo, a pornografia, a indústria cultural.

Por outro lado, sua busca leva a coisas belas. Talvez, ela nunca acabe e explique a dor e a delícia de sermos o que somos.

Nossas lutas também devem buscar sentimentos oceânicos. Revolução de cara limpa, não rola.

Leia também: Amy, diversão e morte

28 de julho de 2011

McDonalds, “mais saudável” e terrorista?

Em 26/07, o McDonalds anunciou que fará uma mudança na composição da refeição infantil McLanche Feliz. Agora, as pequenas vítimas da lanchonete contarão com uma porção de fruta como acompanhamento da opção principal, além da batata frita ou cenoura e da bebida.

Segundo a poderosa organização o objetivo é uma refeição “mais saudável”. A porção de batata frita também ficará menor, reduzindo o número de calorias pela metade. Há outras alterações, atingindo outros produtos da rede. Os preços continuariam os mesmos. Os efeitos nocivos para a saúde provavelmente também.

Enquanto isso, Morrissey dispara contra as redes de fast-food. Militante da causa vegetariana, o cantor inglês declarou:
Nós todos vivemos em um mundo de assassinos, como os eventos na Noruega mostraram, com 97 mortos. Mas isso não é nada comparado ao que acontece no McDonald's e no Kentucky Fried Shit todos os dias.
Exagerou. Foram 76 e não 97 as vítimas dos ataques na Noruega.

Leia também: Receita para explodir bueiro

Dólares, dívidas e calote argentino

O governo resolveu taxar algumas operações feitas em dólar. O objetivo é deter a desvalorização da moeda. Mas, dificilmente, o dólar voltará a se valorizar com medidas superficiais como esta.

A causa mais importante da desvalorização da moeda americana no Brasil é outra. O dólar é trazido pra cá e trocado por real. Este, por sua vez, é usado na compra de títulos da enorme dívida pública brasileira. Papéis que pagam a maior taxa de juros do mundo.

Enquanto isso, o Banco Central continua a comprar dólares para diminuir a oferta. O prejuízo para os cofres públicos chegou a R$ 147 bilhões em 2009 e já é de cerca de R$ 50 bilhões em 2010. Questionar a divida pública, não pode. Renegociar parte dela, nem pensar. Suspender seu pagamento, jamais!

Argentina acertou ao dar calote

Dívidas também são assunto de entrevista publicada no jornal argentino Página/12, em 24/07. O entrevistado é John Bowler, do "The Economist". Segundo ele, o maior risco de calote vem da Itália. O débito italiano é o terceiro do mundo. São dois trilhões de dólares.

Bowler compara com o calote argentino, de 2002. Até hoje, o maior da história. O montante envolvido representava menos de 10% da atual dívida italiana.

O economista admite que a decisão argentina possibilitou ao país recuperar-se economicamente. É verdade que a Argentina passou a ser boicotada pela comunidade financeira internacional. Mas, isso teria preservado sua economia dos efeitos de crises financeiras posteriores.

De qualquer maneira, o analista avisa. Se a crise do euro piorar, nem este isolamento será suficiente para poupar a economia argentina.

Leia também: Presente de grego para os gregos

27 de julho de 2011

Amy, diversão e morte

O que separa o ser humano de outros animais é sua enorme capacidade transformadora. Para o bem e para o mal. A essa capacidade Marx deu o nome de trabalho. Não em seu sentido mais estreito e torturante. Mas, como atividade criadora.

Do pote de barro ao computador. Da colheita à poesia. A atividade humana faz e destrói coisas belas ou não. Arar a terra é necessário à sobrevivência mais material. Cantar, não é. Ainda assim, os lavradores sempre cantaram. Até os escravizados, como fizeram os negros americanos, criadores do blues.

A arte é uma atividade que expande os horizontes de nossa espécie. Por fora e por dentro da gente. Nesse sentido, ela é gratuita. Não tem serventia prática imediata. Quando começa a ter, é menos arte do que deveria ser.

A grande maioria de nós trabalha para ter condições de fazer o que gosta. Artistas bem sucedidos podem trabalhar no que gostam de fazer. Seu ofício parece ser mais uma diversão.

Os problemas surgem quando a diversão transforma-se em atividade repetitiva e entediante. Em criação permanentemente pressionada pelo mercado. O “show-business” a lhes cobrar sucesso constante. A diversão como fruto da criação desaparece.

Diversão sem criação é o que podem oferecer drogas e bebida. Provavelmente, artistas não criem melhor sob seu efeito. Elas são uma espécie de muleta. Se as pernas começam a gangrenar, a queda é inevitável.

Ninguém nunca vai saber por que exatamente morreu Amy Winehouse. Mas, é muito provável que tenha sido de tristeza.

Leia também: A música negra olha para a luz

Crise: o ruim, o péssimo e o bom

O trecho abaixo é de um artigo de Paul Krugman, respeitado colunista do The New York Times. Sob o título ''O risco de uma crise mundial aumenta'', foi publicado pela CartaMaior, em 25/07. Prevê duas saídas para a crise das dívidas americana e européias. Uma ruim, outra péssima:
Para aqueles que conhecem a história da década de 1930, o que está ocorrendo agora é muito familiar. Se alguma das atuais negociações sobre a dívida fracassar, poderemos estar perto de reviver 1931, a bancarrota bancária mundial que alimentou a Grande Depressão. Mas se as negociações tiverem êxito, estaremos prontos para repetir o grande erro de 1937: a volta prematura à contração fiscal que terminou com a recuperação econômica e garantiu que a depressão se prolongasse até que a 2ª Guerra Mundial finalmente proporcionasse o "impulso" que a economia precisava.
Como se vê, a hipótese ruim de Krugman diz respeito à saída pela guerra. Ele lembra que foi a 2ª Guerra Mundial que reaqueceu a economia mundial nos anos 1930. Realmente, o mais sangrento conflito bélico da história proporcionou uma enorme destruição de vidas e queima de capital.

Outros ingredientes da época também estão presentes. Entre eles, governos de esquerda que servem à direita. A conseqüente e justa desilusão popular com a política institucional. O avanço do conservadorismo e do fascismo.

A história nunca se repete tal como aconteceu. Mas, antes como agora, é preciso avançar na luta anticapitalista. A única noticia boa é que há povos ocupando as ruas e praças. Organizando os explorados, ofendidos e humilhados.

Leia também: Chile: uma festa muito séria

26 de julho de 2011

A China não é alternativa

Com a economia mundial tendo crises intestinais, muita gente aponta a China como alternativa. Como se o gigante asiático também não estivesse enroscado na enorme confusão. E não se trata apenas da dependência em relação à economia estadunidense.

Há os que acreditam que a China não é capitalista. Impossível concordar. E há os que dizem que se trata de outra forma de gerenciar o capitalismo. Talvez, tenham razão. Vejamos alguns dados publicados na revista CartaCapital de 06/07:
De 1999 a 2009, a participação do Estado na produção industrial em termos de valor caiu de 49% para 27% (...). Em 1999, as firmas controladas pelo governo detinham 67% do capital industrial; uma década depois, sua participação caiu para 41%. (...)
Mas:
O governo chinês tem apertado o controle sobre algumas indústrias que considera "estratégicas", de petróleo e carvão às telecomunicações e equipamentos de transporte. O governo tem elaborado regras de acesso ao mercado que favorecem as estatais. (...)
Das 42 companhias da China Continental presentes na lista das 500 maiores empresas do mundo da revista Fortune em 2010 apenas três não são de propriedade do governo. (...). Em 2010, (...) das cem maiores firmas chinesas com capital aberto, 75 eram monitoradas pelo governo.
Ou seja, diferente do modelo neoliberal, há um forte controle estatal da economia. Mas, a produção está voltada para o mercado externo. Se este fraquejar, abala a economia chinesa. Uma desaceleração na China, por sua vez, afetará toda a economia mundial.

É por isso que Jin Canrong, professor da Universidade do Povo de Pequim, declarou recentemente: “A China não quer alcançar alguma coisa. Quer evitar coisas ruins. Somos potência do status quo (Folha de S. Paulo - 19/07)”.

Mas, se pode haver dúvidas sobre o caráter do capitalismo chinês, não é o caso quanto ao papel da classe trabalhadora nele. Vejamos o que diz a socióloga chinesa Pun Ngai sobre o sistema de fábrica na China:
É um sistema de controle totalitário da produção e da reprodução. A área onde foram construídas as instalações da Foxconn na China ocidental é um enorme parque industrial. Foram destruídos mais de 100 vilarejos para construir essa área. Os agricultores perderam a terra e as casas, mas a Foxconn não os contrata, porque quer operárias e operários jovens, nunca acima dos 30, 35 anos, enquanto os agricultores são de meia-idade (leia mais aqui).
A socióloga também avisa que multiplicam-se as greves e revoltas operárias. Diz que são comuns fábricas com mais de 100 mil trabalhadores.

O gigante asiático não é alternativa ao capitalismo. É seu complemento baseado no máximo de exploração. Pode provocar reações dos explorados na mesma proporção.

Leia também: Estados Unidos mais baratos que a China?

25 de julho de 2011

A Noruega e o terrorismo loiro

Ibrahim Hewitt é editor-chefe do site “Middle East Monitor”. Publicou um artigo sobre os recentes atentados na Noruega. O texto foi reproduzido pela agência CartaMaior, em 24/07. Eis um trecho:
Os crimes, como leremos em todos os jornais, serão descritos como ato de “pessoa desequilibrada” que “agiu individualmente”. Ergo [Logo], a única ameaça que continua a pesar sobre a civilização é a “ameaça terrorista” “dos islâmicos”. Ergo, o foco de toda a legislação e de todos os esforços antiterror devem continuar apontado contra o mundo muçulmano e as comunidades muçulmanas na Europa e nos EUA.
A advertência tem grande chance de se mostrar verdadeira. Os países nórdicos (Noruega, Suécia, Dinamarca, Finlândia e Islândia) costumam ser vistos como paraísos de justiça social. Neste cenário, fica fácil mostrar uma carnificina da extrema direita como um raio num céu azul.

No entanto, pele alva e cabelos loiros não são garantia de comportamento angelical. Uma das características mais lembradas das sociedades nórdicas são seus generosos sistemas de bem-estar social. Mas a verdade não é tão rósea como muitas bochechas norueguesas.

A eliminação de indivíduos considerados “imperfeitos” é chamada de eugenia. Foi praticada em larga escala até a Segunda Guerra, em vários cantos do planeta. Entre suas práticas estava a esterilização forçada de mulheres tidas como deficientes ou inferiores. Nos países nórdicos não foi diferente. Mas, acreditava-se que tinha sido abandonada após a derrota do nazismo.

Nada disso. Em 1997, o jornalista Maciej Zaremba revelou que a esterilização em massa continuou a ser praticada por muitos anos. Segundo ele, na Dinamarca, 11 mil pessoas foram esterilizadas entre 1929 e 1967. Noruega e Finlândia foram responsáveis por mil casos, cada uma. Diante disso, há que se perguntar a quem exatamente pretendia servir o estado de bem-estar social.

Justiça social para os “puros”. Crise econômica. Tolerância em relação ao terrorismo loiro. É assim que se chocam os ovos das serpentes peçonhentas do fascismo.

Leia também: A Europa e seus fantasmas

22 de julho de 2011

Receita para explodir bueiro

Ingredientes: uma rede subterrânea secular sem manutenção ou mapeamento. Serviços públicos privatizados. Concessionárias com altas taxas de lucros. Baixo investimento em equipamentos novos e pessoal. Falta de manutenção. Fiscalização zero. Punições, idem. Agências reguladoras controladas pelos regulados. Fiação elétrica abandonada. Canalização de gás, idem.

Modo de fazer: fure milhares de bueiros pela cidade. Cuide para que os que servem à canalização de gás fiquem próximos aos que abrigam instalações elétricas. Mantenha a fiação elétrica banhada em gás natural. Aguarde a faísca. Não precisa servir.

Presente de grego para os gregos

Os gregos venceram a guerra contra Tróia dando um presente aos inimigos. Era o famoso cavalo de madeira recheado de soldados. Desde então, presente de grego virou sinônimo de coisa indesejada.

Agora, veio a vingança. É o pacote de ajuda econômica à Grécia. No total, são 109 bilhões de euros. A princípio, parece bom. Não deixa de representar um calote parcial. Uma pequena derrota para os banqueiros. Não é bem assim.

Em primeiro lugar, a Grécia não tem a menor condição de pagar uma dívida que representa 160% de seu PIB. Há algumas décadas que dívidas públicas não são feitas para serem quitadas. Servem apenas para sugar recursos públicos através do pagamento de seus juros. Sangria que atende aos interesses de minorias que controlam grandes corporações e países.

Em segundo lugar, os recursos que vêm do pagamento dessas dívidas já têm destino. Não são usados apenas para que banqueiros e empresários comprem carrões, mansões, iates, propriedades. Vão, principalmente, para grandes operações financeiras nos mais diferentes pontos do planeta.

É por isso que a aprovação do pacote envolveu tantas negociações. Era preciso ver quanto da dívida podia ser perdoado sem causar um efeito dominó na economia mundial. Ainda assim, nada garante que os cortes feitos não venham a causar problemas não se sabe onde, nem como.

De qualquer maneira, o cavalo de madeira já está dentro dos muros gregos. São as medidas que punem a maioria de seu povo. A sangria continua.

Leia também: A Europa corroída por sua moeda

21 de julho de 2011

Chile: uma festa muito séria

O Chile vem assistindo a um dos maiores protestos estudantis desde o fim da ditadura. São milhares de jovens nas ruas, usando muita criatividade e bom humor.

Os estudantes reproduziram uma dança de “Thriller”, sucesso de Michael Jackson. Organizaram uma maratona de 1.800 horas em volta do Palácio do Governo.

A grande mídia tenta mostrar os protestos como apenas uma grande festa de adolescentes. Nada disso. A alegria das manifestações tem razões muito sérias.

Os estudantes exigem profundas reformas na educação. Entre elas, ensino universitário para todos. A tradicional Universidade do Chile é pública, mas cara. Um curso custa US$ 8.000 anuais. A renda média chilena não chega a US$ 700 mensais.

O Chile foi um dos primeiros países a adotar o modelo neoliberal. Tarefa imensamente facilitada pelo governo sangrento de Pinochet. O resultado é uma grande desigualdade social.

É o que mostram dados da reportagem de Lucas Ferraz para a Folha de S. Paulo, de 20/07: cerca de 60% dos 17 milhões de chilenos têm renda média inferior à de Angola. Enquanto isso, 20% vivem com renda semelhante à de países como Noruega e Dinamarca.

O atual governo é de direita. O anterior era formado por partidos de esquerda. Mas, limitou-se a participar dessa festa para poucos. Daí, a desilusão popular com as instituições oficiais e a opção pela política feita nas ruas.

Os chilenos aceitaram o convite feito pelos povos africanos, árabes e europeus. Invadiram as praças. E não abrem mão da alegria como parte da revolta. Mas, é preciso preparar a resistência. As forças da repressão odeiam folias.

Leia também: A revolução egípcia sob ameaça

20 de julho de 2011

Harry Potter, socorro!

Harry Potter se despede das salas de cinema. Logo agora, que o capitalismo parece prestes a soltar mais uma de suas bruxarias descontroladas.

Em 1848, Marx e Engels escreveram no Manifesto Comunista: “Tal como o aprendiz de feiticeiro, a burguesia não consegue controlar as potências que pôs em movimento”.

Um exemplo dessas potências são as freqüentes crises econômicas. Nem os capitalistas sabem quando e como elas podem acontecer. Por isso, consideram o capitalismo como um produto da natureza. Daí, muitos de seus especialistas tratarem a economia como uma ciência exata.

É o caso de Lawrence Summers, que foi economista-chefe do Banco Mundial. Portanto, um cara muito poderoso. Em 1991, ele afirmou:
As leis da economia são como as leis da engenharia. Só há um conjunto de leis e funcionam em todas as partes. As normas que são aplicadas na América Latina e no Caribe ou no Leste Europeu são aplicadas igualmente na Índia. Já não existe uma economia indiana à parte e diferenciada. Há apenas economia.
É o que diria qualquer economista ou jornalista amigos do sistema. Para eles, ser contra as leis do “livre mercado” é o mesmo que ser contra a lei da gravidade. Talvez seja por isso que não estejam nem aí para o meio ambiente. Se as leis da natureza se chocam com a produção capitalista, pior para elas.

São aprendizes de feiticeiro que não aprendem nem querem aprender. Aliás, uma das raízes da palavra “feitiço” é o ato de “fazer com a mão”. Seria a capacidade humana de produzir algo que a natureza por si só não produz. Quando fazemos fogo sem depender da queda de um raio, por exemplo.

Muito interessante, mas tão perigoso quanto brincar com fogo.

Cadê o Harry Potter quando precisamos dele!

Leia também: Estados Unidos e China: abraço de náufragos

19 de julho de 2011

Estados Unidos e China: abraço de náufragos

Estamos em plena crise da dívida americana. Os maiores devedores do mundo ameaçam dar calote. Os chineses são seus maiores credores. Possuem mais de U$ 1 trilhão em papéis estadunidenses. Mesmo assim, continuam a comprar títulos do tesouro americano. De fato, não têm outra escolha.

Se os chineses resolvessem vender seus títulos americanos, a oferta cresceria fortemente e o valor deles despencaria. Causariam desvalorização nos papéis que estão em suas próprias mãos. E ao manter a compra, tentam demonstrar confiança na economia americana.

É uma armadilha, mas tem suas razões. Há muitos anos, o governo chinês tem fortes motivos para financiar a dívida estadunidense. Ela ajuda a manter o elevado nível de consumo dos americanos. Mantém o enorme fluxo de mercadorias chinesas para os Estados Unidos.

A economia americana tem muito consumo, pouca produção e quase nenhuma poupança. A economia chinesa, produção abundante, poupança demais e consumo de menos. Seria perfeito, se não se tratasse de uma dependência mútua muito perigosa.

Não há dinheiro real suficiente na economia americana para absorver a produção chinesa. É preciso apelar para o crediário. Mais crédito costuma provocar bolhas como a do mercado imobiliário, que estourou em 2008. É grande o risco de novos surtos de inadimplência, atingindo milhões de pessoas e países inteiros.

Um calote da dívida americana seria apenas uma antecipação apocalíptica disso tudo. Atingiria os investimentos chineses em cheio e, por tabela, toda a economia mundial. Chineses e americanos estão num abraço de náufragos. Basta que um deles afunde para arrastar o outro e mais meio mundo com eles.

Leia também:
Economia mundial no piloto automático. Bum!
Capitalismo é dívida, paga pelos pobres

18 de julho de 2011

Economia mundial no piloto automático. Bum!

Em 2005, um Boeing 737 da companhia grega Helios sobrevoava Atenas em círculos há horas. Ninguém conseguia fazer contato pelo rádio com o avião. Dois caças militares foram enviados. Os pilotos conseguiram ver passageiros e tripulação pelas janelas do avião. Todos mortos.

Investigações posteriores descobriram que uma falha humana deixou o avião sem pressurização. Faltou ar. As máscaras de ar dos passageiros caíram automaticamente. Passageiros e tripulação achavam que os pilotos estavam cuidando da situação. Mas, na cabine de comando, os pilotos haviam desmaiado antes de colocar suas máscaras.

O avião foi mantido no ar pelo piloto automático. Caiu quando o combustível acabou. Todos os 121 passageiros e tripulantes morreram.

A economia mundial parece um avião guiado pelo piloto automático. O neoliberalismo é o plano de vôo e ninguém contesta. Em várias partes do mundo, há os governos que se dizem de esquerda e os que não se confessam de direita. Dizem isso e aquilo. Mexem-se de um lado para outro. Só não desativam o piloto automático. Acham que está tudo tão bem que abandonaram a cabine de comando.

Na Itália, Berlusconi quis enfiar no plano de austeridade econômica uma medida que o isentava de pagar uma multa bilionária. Nos Estados Unidos, republicanos e democratas trocam pedradas numa loja de louças. Na Inglaterra, o primeiro-ministro envolveu-se em escândalos com grampos telefônicos.

Os governos dos países mais importantes do mundo estão ocupados demais com problemas políticos para governar. O ar vai faltando. Deliram todos.

Mas, diferente do acidente aéreo, alguns poucos devem se salvar. Os de sempre. Até o próximo vôo, com ainda mais vítimas.

Leia também: Nuvens pesadas no horizonte econômico

15 de julho de 2011

A revolução egípcia sob ameaça

A derrubada de Mubarak foi uma vitória histórica do povo egípcio. Tem inspirado milhões de lutadores no mundo todo. Mas, o processo revolucionário também mostra a capacidade de recuperação de seus inimigos.

Mubarak concordou em renunciar, pressionado por seus aliados. Entre eles, o marechal Mohamed Tantawi. Hoje, Tantawi preside o Conselho Militar que assumiu o poder no país. Vem conduzindo uma transição por cima.

Há 10 mil revolucionários jogados nas prisões. Cerca de 1.200 lutadores foram mortos pela repressão do regime durante as revoltas de rua. Apenas um policial foi julgado. Um grande protesto das famílias dos mortos saiu às ruas no mês passado. As forças policiais voltaram a reprimir.

O julgamento de Mubarak e de outros carrascos do regime vem sendo adiado. Estas e outras informações desanimadoras estão em reportagem de Robert Fisk para o The Independent, de 12/07. Nela, Fisk observa que:
A vantagem da revolução, ao que parece, foi que ela não teve nenhum líder, ninguém para ser preso. Mas a sua desvantagem, também, foi que ela não teve nenhum líder, ninguém que assumisse a responsabilidade pela revolução, assim que ela acabasse.
Não é verdade que ninguém tenha sido preso ou que a revolução tenha acabado. Porém, realmente parece faltar uma direção organizada. Afinal, o regime cambaleia, mas continua em pé. O inimigo conta com toda a estrutura repressiva do Estado.

Processos revolucionários sem organizações revolucionárias são como movimentos grevistas sem organizações sindicais. Greves espontâneas podem até arrancar conquistas. Mas a luta permanente contra os patrões precisa de entidades atuantes e controladas pelos trabalhadores.

O destino da revolução egípcia não está definido. A população continua a resistir e a exigir o fim definitivo do regime. A vitória só tem alguma chance se a resistência assumir formas organizadas, com decisões aprovadas democraticamente e colocadas em prática unitariamente.

Leia nota de revolucionários socialistas egípcios: A máscara caiu

Leia também: Por um internacionalismo socialista

Estados Unidos mais baratos que a China?

José Martins é responsável pelo boletim “Crítica Semanal da Economia”. A publicação é do Núcleo de Educação Popular 13 de Maio. Há 26 anos, traz dados importantes e boas análises. Na edição 1.065, uma informação surpreendente:
Com elevação dos salários chineses em cerca de 17% ao ano e apreciação do yuan, o fosso entre os salários chineses e os dos EUA diminuirão rapidamente. Enquanto isso, flexibilização da regras trabalhistas e um conjunto de incentivos governamentais estão fazendo muitos estados dos EUA – como Mississipi, Carolina do Sul, Alabama – cada vez mais competitivos como bases de baixo-custo para o abastecimento do mercado dos EUA... Os trabalhadores e os sindicatos estão mais dispostos a aceitar concessões para trazer empregos de volta para os EUA. O apoio de governos estaduais e municipais pode ser o fiel da balança.
O trecho acima é de um relatório da Boston Consulting Group (BCG), poderosa empresa norte-americana de consultoria. Basicamente, diz que pode haver uma convergência de custos entre as economias estadunidense e chinesa. A primeira em recessão, conta com trabalhadores mais qualificados, aceitando receber salários menores. A expansão da segunda vem aumentando o preço da força de trabalho, sem o correspondente aumento na produtividade. Daí, a recomendação para que as empresas americanas considerem permanecer em seu país ou voltar a ele.

Pode ser uma previsão apressada, mas faz sentido. Baseia-se na única coisa coerente no funcionamento do capitalismo. Os capitais migram para onde surgem promessas de lucros maiores. Mesmo que isso provoque reviravoltas estonteantes. Mais uma!

Leia também: As rachaduras da ponte chinesa

14 de julho de 2011

O CADE deu asas a porcos

A fusão Pão de Açúcar/Carrefour já era. Não tem problema. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) aprovou a compra da Sadia pela Perdigão.

“Presunto é Sadia”, todos sabem. O símbolo da Perdigão são dois perdizes. A junção das duas empresas resultou numa espécie de porco alado. Um bicho com poucas chances de voar muito alto. Mas, será o suficiente para colocar nas alturas os preços para os consumidores e o desemprego causado pela operação.

Trata-se de mais um monstro empresarial no mercado brasileiro. Segue o caminho de outros, também autorizados pelo CADE. Em 1996, foi a fusão entre Kolynos e Colgate. Em 2000, nascia a Ambev a partir do casamento entre Antarctica e Brahma. Hoje, ambas dominam cerca de 70% de seus setores no mercado.

O objetivo do CADE é defender a concorrência capitalista. Na realidade, atua como cartório de registro para novos e maiores monopólios.

Vinícius de Carvalho é secretário de Direito Econômico. Concedeu entrevista ao Globo, em 10/07. Segundo ele, há dez anos, o CADE se preocupava com concentrações de 30% do mercado. Hoje, não consegue evitar a formação de grupos que monopolizam 70% ou 80% de seus ramos.

O resultado são monstrengos econômicos que controlam cadeias de produção inteiras. Determinam os preços, causam desemprego e desastres sociais e ambientais. Quando as crises econômicas estouram, alguns desses monstros caem e arrastam meio mundo.

É o capitalismo mais moderno se consolidando no Brasil. Tão bonito como porcos com asas.

Leia também: Monopólios no varejo e no atacado

13 de julho de 2011

Dez anos do massacre de Gênova

Em julho de 2001, aconteceu o que ficou conhecido como massacre de Gênova. Cerca de 300 mil foram às ruas da cidade para protestar contra uma reunião do G8. Os governos das oito maiores economias do mundo debatiam como aprofundar as medidas neoliberais. As mesmas que levariam a Europa ao buraco financeiro em que está hoje.

A multidão desafiava o enorme aparato de segurança que protegia os poderosos do mundo. A resposta foi rápida. A polícia matou o jovem Carlo Giuliani. Num quartel, mais de 250 pessoas foram torturadas durante três dias e três noites. Até hoje, os responsáveis pelo massacre estão sem punição. Alguns foram até promovidos.

Desde essa tragédia a situação política só vem piorando em quase todas as principais economias mundiais. Há governos de extrema direita, como o italiano. Há os que se dizem “socialistas”, como os da Espanha e Grécia. Obama, Lula, Dilma, Cristina são “progressistas”. O fato é que todos têm algo em comum. A obediência ao que dita o mercado. A fidelidade à especulação capitalista. Na economia, ninguém mexe, dizem todos.

Daí, a enorme desilusão política entre os povos no mundo todo. Mas, há políticas e políticas. A política institucional está em avançado estado de podridão. A política que mais interessa aos explorados é feita nas ruas e locais de trabalho. Em greves, ocupações, assembléias, acampamentos. É quando a indignação se organiza e dá sua resposta. De baixo pra cima.

Mais do que nunca, é importante lembrar o massacre de Gênova. É assim que as instituições “democráticas” respondem aos que desafiam a ditadura econômica dos capitalistas.

Leia também:
A Europa corroída por sua moeda
Eleger ladrão pode. Ateus e gays, não

12 de julho de 2011

A Europa corroída por sua moeda

O capitalismo nasceu em terras européias. E um dos principais elementos a possibilitar seu surgimento foi a formação dos Estados modernos. O fim dos feudos e suas taxas, leis e moedas próprias permitiu ampla circulação de mercadorias. Sob um poder único, um comércio vigoroso se desenvolveu em países como Inglaterra, França, Espanha e Portugal.

A circulação nacional da moeda funcionou como um ácido corrosivo das relações feudais.

A criação do euro foi produto de um processo oposto. É talvez o único caso na história em que a unificação monetária veio antes da unificação política. Nem por isso, deixou de servir a interesses de uma minoria poderosa.

A moeda única européia impôs uma competitividade que a periferia econômica da região não tinha condições de acompanhar. A atual crise das dívidas grega, portuguesa, irlandesa, italiana e espanhola é produto dessa situação.

O euro simboliza o império das leis econômicas sobre a vontade social. A busca de lucros acima do respeito aos direitos e necessidades da população. Sua adoção facilitou a especulação capitalista na Europa. Sua quebra afetaria ainda mais a já abalada economia mundial.

E os maiores prejudicados são os de sempre. É o que diz a reportagem “Países europeus redescobrem a pobreza”, publicada em O Estado de S. Paulo em 10/07. Segundo a matéria de Jamil Chade:
Nas últimas semanas, estudos publicados pela União Europeia (UE), pelos governos nacionais e entidades de pesquisa revelam o que já vem sendo chamado de "nova pobreza". Centenas de empresas fecharam as portas. Mas foram os cortes drásticos nos investimentos dos governos que aprofundou ainda mais a recessão social.
A circulação continental do euro corrói como ácido a vida de milhões de trabalhadores.

Leia também: Borboletas, caos e capitalismo

11 de julho de 2011

Monopólios no varejo e no atacado

“Dez empresas concentram 70% das compras dos carrinhos dos consumidores nos supermercados”. O título da matéria de Fabiana Ribeiro e Henrique Gomes Batista, no Globo de 10/07, diz tudo. Os 30% restantes são divididos por cerca de 500 empresas.

A reportagem aproveita a polêmica sobre a fusão entre Pão de Açúcar e Carrefour. Mostra como grandes empresas possuem várias marcas de um mesmo produto e as coloca para concorrer entre si.

A Unilever, por exemplo, controla a produção de sabonete, xampu, sabão, sorvete, detergente, chá, manteigas, temperos e molhos. Comercializa das marcas mais baratas às mais caras. De uma ponta a outra, lucra sozinha. O mesmo acontece em outros setores do varejo.

Tudo isso é produto de fusões. São operações em que grandes grupos econômicos engolem pequenas marcas. Colocam a colorida variedade capitalista sob seu controle. Dominam grande parte do mercado e obtêm lucros enormes.

A matéria cita o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Depende dele a autorização para a realização de fusões empresariais. O problema é que o Brasil é o único país do mundo em que a fusão começa antes de sua autorização.

Um exemplo é a criação da BRF, resultado da junção entre Perdigão e Sadia. Há dois anos aguarda autorização do CADE. Enquanto isso, vem operando normalmente.

O trabalho jornalístico mereceria elogios não fosse por um detalhe. Não cita um setor econômico muito importante. Também altamente concentrado. Fundamental para a viabilização dos lucros dos monopólios varejistas. É o da grande mídia.

Diferente dos monopólios do varejo, a grande mídia é um atacadista isolado. Pode denunciar, sem ser denunciada.

Leia também: Tempero bom em carne podre

8 de julho de 2011

"Senta aqui, Bolsonaro!"

Vestido de mulher, com unhas pintadas e maquiagem. Foi assim que o cartunista Laerte participou de um debate durante a Flip, em Paraty, em 02/07. Os temas: orientação sexual, humor e preconceito. Do alto de seus saltos altos e de sua sabedoria, o desenhista falou sobre sua experiência como “cross-dressing”: o uso de roupas femininas por homens e vice-versa.
O medo das pessoas de perder o emprego, de perder o amor da família e o respeito dos amigos as torna muito conservadoras e tímidas em relação a sua sexualidade. Eu não vou apenas a lugares GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes). Eu vou a qualquer lugar, a qualquer bar e a qualquer restaurante e sou sempre bem recebido.
Admitiu, porém, que sua experiência não pode ser generalizada.

Tudo aconteceu de forma muito fofa comigo em relação ao fato de eu me vestir de mulher. Mas sei que existem crimes de ódio ocorrendo contra homossexuais no Brasil todo.
Mas, alertou contra o perigo de isolamento do movimento gay: "Você tem que sair das trincheiras e lamber o pescoço. Tipo: 'Senta aqui, Bolsonaro!'", arrancando gargalhadas do público.

Perguntado sobre as dificuldades de fazer humor de forma politicamente correta, o cartunista foi bastante claro. Fazer graça exige liberdade, disse. Nem por isso, está acima da crítica, completou. Citou um exemplo:

Quando o Rafinha Bastos tuíta que mulher feia tem de agradecer se for estuprada, não tem como ele não ser criticado. Ele falou merda sob qualquer ponto de vista.

Dizer uma coisa dessas num país que ainda trata mal suas mulheres, muitas vezes com violência, especialmente aquelas que não estão no padrão das capas de revista, é de uma crueldade sem tamanho. O humor trabalha com o preconceito, mas ele extrapolou todos os limites com isso e é natural que haja reação.
Vindo de um mestre, é bom prestar atenção. Falam em ditadura do “politicamente correto”. Que ditadura é essa que convive com piadas racistas, machistas, homofóbicas repetidas diariamente nos meios de comunicação?

A verdadeira ditadura é a do humor preconceituoso que reina nas ruas, botecos, locais de trabalho, festas e reuniões familiares. Fazer piada com humilhados e ofendidos é fácil porque é covarde. E dá audiência e muito dinheiro para uns poucos.

Se o humor tiver que trabalhar com preconceitos, que seja contra os poderosos! Fala sério!

Leia também: Laerte: feminino e divino

7 de julho de 2011

Uma sugestão para Tarantino

Em seu blog, Marcos Rolim traz o seguinte relato:
Dom Luiz Gonzaga Bergonzini, bispo de Guarulhos, afirmou em entrevista recente que “não há verdadeiramente mulheres vítimas de estupro já que, em alguma medida, elas sempre consentem com o ato”. Para mostrar às mulheres que não devem abortar por conta do estupro, o Bispo usa em seu confessionário a “técnica da caneta”. Pega a tampa da caneta e solicita que a mulher enfie o cilindro na tampa. Então, movimenta a tampa impedindo o encaixe. Para ele, “uma mulher que não consente com o ato sexual resiste ao encaixe do cilindro na tampa da caneta”. Ao serem confrontadas com a “técnica da caneta”, as mulheres desistiriam do aborto, pois o estupro seria uma “mentira”.
Que tal usar os elementos acima para imaginar uma cena típica dos filmes de Quentin Tarantino?

Seria assim: a mulher submetida à didática demonstração do bispo agarraria o pulso do ilustre prelado, enterraria a caneta em sua mão e rasgaria. Talvez, desse modo, a reverendíssima autoridade tivesse uma idéia aproximada do que é um estupro.

Leia também: Às companheiras do século 19

Revolução é fúria e consciência

Um elemento muito comemorado nas recentes revoltas africanas, árabes e européias é a espontaneidade. As revoluções e motins em curso teriam sido organizados quase sem participação de partidos, sindicatos e instituições.

Em primeiro lugar, a principal função de partidos, sindicatos e instituições não é organizar revoltas. Ao contrário, em geral, estas entidades servem para derrotá-las. E algumas delas o fazem usando a violência.

Não deveria ser o caso dos partidos de esquerda. Mas, entre estes, são muito poucos os que não se assustam com revoltas populares. A maioria corre para tentar controlar a fúria do povo. Colocar ordem na casa e tentar lucrar politicamente com os acontecimentos.

Em segundo lugar, não há revolta ou revolução sem fortes elementos espontâneos. Há muitos que acreditam que a Revolução Russa, por exemplo, foi obra de um partido comandado pelas mãos de ferro de Lênin e Trotski.

Os trabalhadores russos não tinham a menor razão para temer Lênin e Trotski. O partido que eles lideravam não tinha cargos em governos, verbas oficiais, sedes luxuosas, homens armados. Os bolcheviques conquistaram o respeito das multidões em luta misturando-se a elas. Compartilhando de sua ira justa.

Além disso, a Revolução de Fevereiro de 1917 nasceu contra a vontade do partido. Operárias têxteis iniciariam uma greve contra as orientações dos bolcheviques. Mas, o que fez o coletivo partidário? Virou as costas? Não. Assumiu seu erro e engrossou a luta que as trabalhadoras iniciaram.

É nesses momentos que a fúria espontânea assume uma forma consciente e unitária. Daí, a necessidade de uma organização revolucionária. Os operários russos souberam construir a deles.

Leia também: A Europa e seus fantasmas

6 de julho de 2011

Google e Facebook não têm nada de revolucionário

As revoltas na África, Oriente Médio e Europa animam a esquerda mundial. O entusiasmo é ainda maior em relação às ações organizadas através das “redes sociais”. Muito justo. Mas vamos com calma.

Redes de apoio, solidariedade e organização sempre existiram na luta dos explorados. Elas é que tornaram possível vários avanços e conquistas populares.

A classe trabalhadora mundial se mobilizou em vários momentos. No apoio à Comuna de Paris, por exemplo. Contra a execução dos anarquistas Sacco e Vanzzetti. Nas brigadas formadas para lutar na guerra civil espanhola contra o fascismo.

O que pode surpreender é a rapidez da internete. No entanto, tal agilidade é também uma resposta desigual a ação das próprias classes dominantes.

A internete foi criada por militares. Universidades públicas a tornaram um poderoso canal de comunicação. Foi apropriada pelas grandes corporações do comércio mundial. Vem sendo utilizada pelos monopólios de comunicação para impor padrões de consumo e valores conservadores. Só muito marginalmente, ela serve a objetivos subversivos.

Um século atrás, a reposta dos trabalhadores aos jornais dos patrões foi a imprensa operária. Antes disso, as idéias revolucionárias circulavam através dos imigrantes. O capitalismo precisava deles em vários pontos planeta. Anarquistas e socialistas chegavam aos locais mais distantes com suas idéias “virais”. Espalhavam rapidamente sua experiência de luta contra o capital.

Internete e rede social? Tá valendo. E muito. Mas não custa lembrar que as tão festejadas “redes sociais” são monopolizadas por duas empresas gigantes. Google e Facebook não estão a serviço da revolução. Nossas idéias, sim.

Leia também: Os reais criminosos virtuais

5 de julho de 2011

A Europa e seus fantasmas

O capitalismo nasceu na Europa: a competição econômica acima de tudo. Também foi lá que nasceram valores revolucionários: liberdade, igualdade e fraternidade.

Desde então, a competição vem trombando com os valores. Por duas vezes, o choque virou tragédias de proporções cósmicas. Foram as duas guerras mundiais.

Depois dessas carnificinas, parecia que o preço estava pago. A era de prosperidade vinha para ficar. Amargo engano. A mesma força que produziu massacres em escalas industriais continua em ação.

No site da Carta Maior, o aviso: “15 milhões de pessoas correm risco de fome na Europa”. A matéria diz que a Comissão Européia cortou 80% da ajuda alimentar para os pobres. Enquanto isso, 43 milhões de pessoas “não podem pagar uma refeição adequada a cada dois dias”.

Matéria da Folha de 25/06 diz que “os líderes da União Européia decidiram reintroduzir o controle de passaportes nas fronteiras de 25 países do continente”. A medida foi adotada diante da “onda de imigração que ocorre desde o início do ano, após as revoltas em países do norte da África”.

O fato é que os governos europeus cedem à pressão da extrema direita. Rendem-se à idéia de que os imigrantes são a principal causa dos problemas sociais. O islamismo faz o papel de boneco de Judas.

Igualdade, liberdade e fraternidade reduzidas definitivamente a palavras vazias. Vencidas pela competição capitalista que afunda as economias do velho continente.

O fantasma do fascismo ronda a Europa. Esperemos que outra assombração volte a assustar os poderosos. Aquela de que falaram Marx e Engels em 1848: o espectro do comunismo.

Leia também: Grécia e falsa democracia

4 de julho de 2011

Às companheiras do século 19

Irmãs de luta, estou no século 21. Não sei como vim parar aqui. Não importa. Descobri coisas maravilhosas. Aqui, no futuro, parece que aquilo por que tanto lutamos está mais próximo.

As mulheres conquistaram o sufrágio universal. Podem eleger e podem ser eleitas. Ocupam vários cargos nos parlamentos e governos do mundo todo. Também estamos presentes nas artes, esportes, na ciência, na indústria. Certamente, podemos ficar orgulhosas. Tudo isso aconteceu graças a nossas lutas.

Infelizmente, restam muitos problemas graves. Não são apenas os salários menores que recebemos, mesmo tendo escolaridade igual ou superior à dos homens. Nem a dupla jornada de trabalho que teima castigar as mães trabalhadoras. Muitas das governantes que elegemos também não são exemplos animadores.

O pior são os preconceitos morais que continuam a nos vitimar. Vejamos um exemplo simples. Um homem casa com uma mulher com origem social inferior à dele. Pode até haver alguma desaprovação. Mas, no máximo, trata-se apenas de uma escolha pouco sensata.

Já não é caso quando uma mulher se casa com um homem mais pobre que ela. Pior ainda, se ele tiver boa aparência. Neste caso, a mulher cedeu a seus instintos sexuais. É praticamente uma escrava do cio. Uma vadia cegada por seus desejos de fêmea.

É triste ver tantos avanços tecnológicos e culturais convivendo com preconceitos tão ancestrais! Parece que ainda teremos que lutar muito para acabar com o machismo. Apesar disso, tenho muitas esperanças. Somos cada vez mais ousadas.

Encerro por aqui esta carta. Prometo voltar a escrever. Preciso apressar-me para o treino do esporte que adotei nestes novos tempos. É o futebol!

Leia também: Carta à Roma Antiga

1 de julho de 2011

As rachaduras da ponte chinesa

Os chineses inauguraram a mais longa ponte marítima do mundo. Com mais de 40 km, a obra faz parte das comemorações do 90º aniversário do Partido Comunista Chinês. Não há porque duvidar de sua firmeza.

Já não se pode dizer o mesmo de outra ponte. A que ligou a China agrária dos anos 1940 à fábrica do mundo do século 21. Para alguns, trata-se de uma vitória do “comunismo desenvolvimentista”. Para os capitalistas mundiais é um paraíso e uma bóia de salvação.

Paraíso porque colocou a disposição de sua exploração uma enorme massa de trabalhadores mal pagos. Bóia de salvação porque impediu que a crise iniciada em 2008 tivesse conseqüências piores para a economia mundial.

Mas, como gostam de dizer os neoliberais, “não há almoço grátis”. O acelerado processo de crescimento chinês começa a cobrar seu preço. É o que mostra reportagem de Giampaolo Visetti, para o jornal La Repubblica:
Há semanas, explodiu na China o protesto dos operários explorados com horários massacrantes e salários de fome. O punho do regime não basta. E Pequim teme uma faísca que poderia queimar o milagre econômico.
Visetti refere-se a revoltas em Guangdong. A província é responsável por 11% do PIB chinês e 1/3 das exportações. Nos últimos 5 anos, cresceu 12,4%, em média. Índice que deve cair para 8%, acompanhando uma freada nacional de 7%. A maior desaceleração em 30 anos.

A pisada no freio acelera a luta de classes. Muitos outros conflitos estão surgindo. Afinal, são 280 milhões de migrantes internos e 540 milhões de operários. Multidão cansada do que Visetti chama de "escravidão de Estado".

Dizem que se todos os chineses pulassem ao mesmo tempo, causariam um terremoto. Basta que apenas os trabalhadores o façam para que muitas pontes venham abaixo.

Leia também: O negócio da China é capitalista