Doses maiores

31 de outubro de 2011

Até Machado achava escola um saco

Para cúmulo do desespero, vi através das vidraças da escola, no claro azul do céu, por cima do Morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que boiava no ar, uma coisa soberba. E eu na escola, sentado, com o livro de leitura e o livro de gramática nos joelhos.

O trecho acima pertence ao “Conto de escola”, de Machado de Assis. Logo ele, cuja leitura obrigatória torna as aulas ainda menos atraentes para crianças e adolescentes.

O conto representaria o que realmente pensava o grande escritor sobre a vida escolar. Pelo menos é o que diz Arnaldo Niskier, em reportagem de Sérgio Pugliese na coluna “A pelada como ela é”, publicada em 29/10 no “O Globo”.

E olha que na época de Machado não havia TV, rádio, internete, mp3, shopping, videogame, etc. Mesmo sem todas essas tentações, a escola já conseguia ser chata.

Segundo Michel Foucault, a escola é produto da mesma lógica que criou prisões, hospitais, manicômios e fábricas. Instituições pertencentes ao que o filósofo francês chamou de “sociedade disciplinar”, a partir do século 18.

Para Foucault, esse poder disciplinar nasceu da transferência do poder dos monarcas para burocratas que se espalham pelas várias instituições sociais. Desse modo, o poder teria se transformado em micropoderes. O perigo dessa visão é perder de vista estruturas que não têm nada de micros, como as pertencentes ao Estado. Mas tanto Foucault, como Machado valem várias leituras.

Para ler o conto de Machado de Assis, clique aqui.

Leia também: Queremos a preguiça de Deus

30 de outubro de 2011

A fantástica fábrica de novelas

O jornal Valor de 28/10 lembrou os 60 anos de telenovela no Brasil. A primeira foi ao ar em dezembro de 1951, pela TV Tupi. Mas o destaque da reportagem foi a Globo, atual potência em termos de teledramaturgia no País. A matéria traz dados e informações impressionantes. Por exemplo:
...as roupas usadas nas tramas das telenovelas da Rede Globo nunca têm a aparência de que acabaram de sair da loja (...). [Elas] são lavadas com uma substância que tem tonalidade cinza, secadas e passadas para convencer o telespectador de que o figurino faz parte de um mundo real, palpável e próximo.
A produção cenográfica também é espantosa. A reportagem cita a Galeria do Rock, que fica na capital paulista e é cenário da novela "Tempos Modernos":
Muita gente queria saber em que horário eram feitas as gravações - nas madrugadas ou aos domingos? Nada disso. A cenografia construiu uma réplica do centro comercial alternativo paulistano. Absolutamente todas as fachadas das lojas foram reproduzidas, com seus acervos de discos, camisetas, sapatos etc.
Alguns números:
- O principal estúdio da emissora é o Projac, que ocupa uma área de 1,65 milhão de metros quadrados.

- 6,5 mil pessoas circulam diariamente pelo Projac. Destas, cerca 6 mil são funcionários, prestadores de serviço, atores e figurantes.

- Todas as etapas de produção são integradas - pré-produção, gravação, pós-produção e atividades de infraestrutura - e resultam todo ano em 2,5 mil horas de programação - equivalentes a cerca de 1,2 mil filmes em longa-metragem.

- Cada novela conta com 160 cenários de estúdio, refeitos três vezes, o que dá um total de 480 unidades.

- Só em 2009, foram produzidas 60 mil peças cenográficas, entre elas 17 cidades. O acervo de figurinos soma 280 mil peças.

- Cada capítulo custa cerca de R$ 450 mil. Ao multiplicar por 180, chega-se a um custo de de R$ 81 milhões.

- Estima-se que o faturamento no horário das 21 horas chegue a R$ 300 milhões, sem contar a venda de novelas para outros países, como Portugal.
Como se vê, tanto investimento dá lucro. Ao mesmo tempo, a emissora funciona como um poderoso aparelho privado de hegemonia a favor da ordem. Fazendo cabeças com muita competência.

Por outro lado, trata-se de uma verdadeira fábrica, com um exército de trabalhadores. Já pensou uma greve? Ia ser um drama e tanto!

Leia texto de 2005 sobre o tema: Aos 40 anos, a Globo quer ser a senhora do destino

Leia também: Trabalhe de graça pra Globo

27 de outubro de 2011

O problema do PCdoB é a extrema direita

O ministro dos Esportes, Orlando Silva, finalmente caiu. Apesar disso, as denúncias que o atingiram não foram provadas até agora. Seu partido diz que o caso todo não passa de sabotagem da direita. Na verdade, a grande responsável é a extrema direita.

O novo titular da pasta é Aldo Rebelo. E uma das primeiras personalidades a parabenizá-lo foi a senadora Kátia Abreu. Trata-se da presidenta da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, entidade que representa o agronegócio nacional. Ou seja, o setor mais truculento da conservadora classe dominante brasileira.

A senadora usou seu twitter para declarar o seguinte sobre o novo ministro: “Aldo Rebelo faz parte de um time do bem! Parabéns ao governo pela escolha”. Não deixa de ser um reconhecimento merecido. Afinal, Rebelo se uniu à bancada ruralista para alterar o Código Florestal. Uma proposta que pretende acabar de vez com leis que mal conseguem proteger o meio ambiente.

Rebelo também merece ser lembrado por sua atuação na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara Federal. Em 18 de outubro, ele se uniu ao fascista Jair Bolsonaro em votação contra um projeto pela revisão da Lei da Anistia. A proposta pretendia permitir o julgamento de torturadores da ditadura militar. Rebelo colaborou para manter impunes carrascos que executaram dezenas de corajosos membros de seu próprio partido.

Tudo indica que a extrema direita realmente vem sabotando o PCdoB. Mas de dentro para fora.

Leia também: A salsicha de Aldo Rebelo

26 de outubro de 2011

Karaokê no século 17

Prezados amigos do século 19, sabeis como admiro a vida dos habitantes do século 21. Mas, por vezes, sinto que eles mesmos parecem se deslumbrar demasiadamente com sua própria época.

É o caso do entusiasmo com que alguns falam sobre as possibilidades criativas de seus avançados meios de comunicação. Uma delas é o “hipertexto”. Trata-se de textos que podem ser lidos, e modificados por várias pessoas através de ágeis redes de comunicação. Algo que eles chamam de “meio interativo”. É um assombro, sem dúvida alguma.

No entanto, fez me lembrar da utilização da escrita manual antes da popularização da imprensa no século 16. Diferente do texto impresso, o manuscrito acabava por passar por vários copistas. Nesse percurso ia sendo modificado. Digam-me se isso também não pode ser chamado de “meio interativo”? E com a vantagem de não haver tantas preocupações com direitos autorais.

Outra invenção que encanta os viventes destes tempos é o que eles chamam de karaokê. Uma forma de diversão em que os participantes cantam acompanhando música e letra transmitidas por um aparelho. Tal prática não é tão nova assim. Na Inglaterra do início do século 17 era costume homens e mulheres se reunirem para cantar em tabernas. E nestes lugares, as letras das canções eram pintadas nas paredes para que todos pudessem cantar juntos.

Não contesto as evidentes diferenças tecnológicas. Mas, quem sabe, falte um pouco de informação histórica a muitos daqueles que pensam e teorizam sobre seu próprio tempo. Seria prudente que se deixassem encantar menos por experiências que, talvez, não sejam tão recentes assim. Falta-lhes mais informação e humildade.
(Com base no livro “Uma história social da mídia: de Gutenberg à Internet”, de Asa Briggs e Peter Burke).

Leia também Ao século 15: fossos e jacarés

Morre o editor dos quadrinhos inteligentes

Em 26 de setembro passado, morreu Sergio Bonelli. Infelizmente, ele era conhecido por poucos no Brasil. Principalmente, por quem gosta de quadrinhos que combinam inteligência com diversão.

Afinal não é sempre que se vê num gibi personagens que citam Durkheim. Ou aventuras do velho oeste que mostram como os "heróis" americanos massacraram os indígenas. São assim os quadrinhos italianos que Bonelli publicava.

Seu mais famoso personagem é o caubói Tex Willer. Mas foram outros títulos que se tornaram modelos da combinação entre ótimos roteiros, personagens marcantes e belos desenhos. Estamos falando de Ken Parker, Mágico Vento, Dylan Dog, Júlia Kendall, Martin Mystère e muitos outros. Alguns desses títulos, encontrados facilmente nas bancas.

Tudo isso sem falar na colaboração de Bonelli na divulgação de artistas como Hugo Pratt, Giancarlo Berardi, Ivo Milazzo, Milo Manara, Guido Crepax, Gianfranco Manfredi e Tiziano Sclavi.

Para conhecer um pouco sobre essa arte que é conhecida como “fumetti” em italiano, leia o texto abaixo:

Os inteligentes quadrinhos italianos

25 de outubro de 2011

A Revolução Russa foi feita por indignados

Hoje, completam-se 94 anos desde a Revolução Russa. Quase um século depois, a rebelião está nas ruas em vários países do mundo: Tunísia, Egito, Grécia, Israel, Espanha, Estados Unidos. São os indignados na luta contra o capitalismo em uma de suas mais graves crises.

Muitos observadores dizem que os atuais rebeldes rompem com a velha esquerda. Depende do que se entende por velha esquerda. Se se trata de burocracias mofando em aparatos partidários, sindicais e governamentais, eles têm toda razão. Se diz respeito ao maior acontecimento revolucionário do século passado, nem tanto.

É verdade que os indignados não estão organizados verticalmente em grandes partidos disciplinados nem dão vivas ao socialismo. Também parecem não ter grandes lideranças e um programa bem definido. Mas é cedo para dizer até onde tudo isso se manterá desse modo.

Os bolcheviques só se tornaram líderes da revolução meses antes de ela acontecer. Antes disso, foram anos de trabalho de base junto aos trabalhadores e camponeses russos. Sua eficiente disciplina partidária formou-se nas lutas contra a exploração. Não foi produto da cabeça de meia dúzia de dirigentes. E a principal palavra de ordem era “Pão, terra e paz”, não a luta pelo socialismo.

Claro que são muitas as diferenças entre as duas situações históricas. Mas há algumas coincidências importantes também. Entre elas, a contestação ao capitalismo e o organização a partir de baixo.

24 de outubro de 2011

Um cadáver que fede a imperialismo

O tratamento dispensado a Kadafi foi cruel. Não necessariamente desumano. Afinal, tanto ele como seus carrascos cometeram barbaridades bem típicas de nossa espécie. Por outro lado, entre as mais belas conquistas humanas está o respeito à dignidade dos que parecem não possuí-la.

Mais justo seria prender Kadafi com vida. Justo e pouco conveniente. Em um julgamento, ele poderia apontar seus cúmplices. Entre eles, o serviço de inteligência estadunidense. Pouco antes do início das revoltas populares, a CIA vinha ajudando Kadafi na perseguição a seus opositores.

Por enquanto, o imperialismo saiu ganhando. Alertado pelos acontecimentos na Tunísia e Egito, apressou-se a intervir na Líbia. Traiu seu mais recente aliado na região. Mas se isso não tira o sono de Obama, que dirá de seus generais. Ao mesmo tempo, a execução covarde de Kadafi certamente gelou a espinha de outros ditadores da região.

De qualquer maneira, nada está definido. É possível que a onda de revoltas continue a se espalhar para muito além de África e Oriente Médio. Ela inspirou a indignação que tomou conta de cidades européias e americanas. Os alvos políticos são bem diferentes. Mas começam a enxergar no capitalismo o inimigo maior.

A “Primavera Árabe” chegou perfumada pelas promessas de liberdade. Agora, o imperialismo tenta nos sufocar com seu fedor. Só a rebeldia popular pode trazer ar puro.

Leia também: Por um internacionalismo socialista

O que cheira mal nas imagens de Kadafi

Os carrascos de Kadafi igualaram-se a sua vítima em crueldade. Mas também chamou a atenção a ampla divulgação da violência. Quase toda a grande imprensa mundial exibiu as terríveis imagens.

Os editores alegam que em tempos de internete elas viriam a público de qualquer forma. Um fenômeno que acontece porque as pessoas comuns teriam se tornado repórteres. Milhares delas no mundo todo registram imagens que vão parar na rede mundial. Mas divulgar fotos e filmes desse modo é jornalismo?

Se olharmos para a atual comunicação de massa, a resposta é sim. E isso é muito perigoso. Basta lembrar um artigo que Roland Barthes escreveu em 1962. Em “A mensagem fotográfica”, ele diz que a imprensa:
...utiliza a credibilidade particular da fotografia (...) para fazer passar como simplesmente denotada uma mensagem que na verdade é fortemente conotada; em nenhum outro tratamento a conotação toma tão completamente a máscara "objetiva" da denotação”.
Conotação é o sentido figurado de um texto. Denotação é seu sentido literal. O que Barthes diz é que a fotografia dá a impressão de objetividade. É uma imagem. É o fato. É denotativa. Mas os vários modos de tratar e manipular a imagem dão a ela sentidos conotativos. Resta muito pouco de neutro nela. Principalmente, da forma como a grande mídia a utiliza.

As imagens de Kadafi servem a quê? Guerra por audiência? Afirmação da vitória imperialista? Recado a outros ditadores? Tudo isso é possível. Mas, com certeza, elas denunciam uma imprensa cada vez mais rasa e sensacionalista. Perfeitamente adequada à alienação geral que aumenta a tolerância social tanto em relação aos ditadores quanto a seus carrascos.

Leia também A mídia merece uns molotovs

22 de outubro de 2011

Porque os gregos estão tão putos

Duas manchetes. A primeira diz: “Parlamento da Grécia aprova arrocho; salário mínimo pode cair 25%”. Trata-se de matéria publicada em 20/10 pelo enviado da Carta Maior a Atenas, Kostis Damianakis.

Segundo o texto, o parlamento grego aprovou pacote de medidas de arrocho proposto pelo governo do país. Por exigência de UE, FMI e BCE, anulam-se todos os acordos coletivos que garantem salários mínimos no setor privado. Está previsto ainda um corte de 100 mil postos de trabalho no funcionalismo público, entre outras medidas.

A outra manchete foi reproduzida pelo site esquerda.net, em 19/10. Ela diz “Gregos ricos tiraram 200 bilhões de euros do país”. É o que afirmou Markus Kroll, do instituto financeiro alemão Roland Berger, ao jornal Bild.

É por isso que uma greve geral reuniu 150 mil pessoas nas ruas de Atenas no dia 20/10. Entre os manifestantes estava Leonidas Papadopoulos, médico que faz especialização em oftalmologia e é membro do movimento “Não Pagamos”. Ele explicou ao repórter da Carta Maior:
Nosso movimento defende o que vários comentaristas mal-intencionados na TV dizem: ou tudo ou nada, ou nós ou eles. É por isso que o sistema está com medo do nosso movimento. Começamos na luta contra o pagamento de pedágios onerosos e injustos e isso se espalhou em outros setores. Já há hoje um senso comum de que o cidadão não deveria pagar por serviços e bens públicos, como o uso das estradas, hospitais, a água, eletricidade etc. Tudo isso deveria ser livre e gratuito, pois é o povo que produz ou sustenta com seus impostos esses bens e serviços, e ele deveria desfrutar deles livremente. No entanto, tudo isso é uma mercadoria para alguns apoiadores do sistema, que querem acumular mais-valia.
É, dr. Papadoulos não tem papas na língua. E deve ter deixado os neoliberais de cabelo em pé. Serviços públicos totalmente gratuitos? Um absurdo, diriam eles. Molezas desse tipo só para banqueiros e outros patrões, sabemos nós. Os peões que fiquem duros e jogados na rua.

É ou não é pra ficar muito puto!

Leia também: A luta anticapitalista e a violência inevitável

21 de outubro de 2011

A luta anticapitalista e a violência inevitável

Em 08/10, Naomi Klein esteve em Nova Iorque para declarar seu apoio ao movimento “Ocupar Wall Street”. A respeitada intelectual anticapitalista também publicou artigo na revista “The Nation”. Entre outras coisas, ela abordou a questão da resistência pacífica:
Vocês se recusaram a entregar à mídia as imagens de vitrines quebradas e brigas de rua que ela, mídia, tão desesperadamente deseja. E essa tremenda disciplina significou, uma e outra vez, que a história foi a brutalidade desgraçada e gratuita da polícia, da qual vimos mais exemplos na noite passada. Enquanto isso, o apoio a este movimento só cresce.
Ela tem toda razão. Mas parece sugerir que manifestações populares tornam-se violentas por escolha de seus participantes. E isso não é verdade para a grande maioria delas, nem para muitas revoluções sociais.

Os setores que defendem a violência como forma de luta costumam ser minoritários. Principalmente, porque é um caminho fadado ao fracasso. Não há como derrotar a repressão estatal só pela força bruta. As forças populares já enfrentam grandes dificuldades para se organizar. É ainda mais difícil enfrentar um inimigo que conta com um exército de homens armados, treinados e disciplinados.

No entanto, isso não quer dizer que a violência não estará presente na luta anticapitalista que se espalha pelo planeta. Já são muitos os enfrentamentos nas ruas e praças de Londres, Washington, Atenas, Santiago do Chile... E deverão aumentar. Não se trata apenas da presença de provocadores de direita ou de infiltrados das forças de repressão. Nem somente de ações de criminosos que a própria situação de crise facilita.

O Estado é o principal responsável pela violência. A intolerância vem de suas forças militares. Prontas para esmagar qualquer questionamento a uma ordem social injusta. Guardiães de instituições políticas surdas aos interesses da maioria da população. É um grande aparato que defende os interesses mesquinhos de 1% da população contra os restantes 99%.

Os rebeldes são empurrados para a violência revolucionária de cima para baixo.

Leia também: Os jovens como exército rebelde de reserva

20 de outubro de 2011

Tá na hora da onça beber cerveja?

Dados da “Global Footprint Network” (Rede da Pegada Ecológica Global) e da organização inglesa “Fundação para uma Nova Economia” dizem que a Terra já entrou em déficit ecológico. Ou seja, a diferença entre os recursos naturais disponíveis anualmente e aqueles destruídos pela humanidade tornou-se negativa.

Segundo reportagem de Walter Oppenheimer para jornal espanhol El País de 26/09, isso aconteceu em 27 de setembro. Assim:
...tudo o que consumirmos até o final do ano passa a contar como recursos que o planeta não pode produzir e contaminações que a terra não é capaz de absorver.
Seria o resultado da lógica produtiva que impera há alguns séculos. Pode ser exagero, mas certamente em uns 300 anos já fizemos mais estragos que em todos os séculos anteriores. Bem diferente dessa lógica é a de vários povos ameríndios.

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro concedeu entrevista à revista Cult em 13/12/2010. Em certo momento, ele descreve a relação muito especial que alguns povos indígenas estabeleceram com as outras espécies vivas. Citando um exemplo, ele diz que:
...o sangue dos animais que matam é visto pelas onças como cerveja de mandioca, o barreiro em que se espojam as antas é visto como uma grande casa cerimonial, os grilos que os espectros dos mortos comem são vistos por estes como peixes assados etc. Em contrapartida, os animais não veem os humanos como humanos. As onças, assim, nos veem como animais de caça: porcos selvagens, por exemplo. É por isso que as onças nos atacam e devoram, pois todo ser humano que se preza aprecia a carne de porco selvagem.
Trata-se de uma inversão simbólica que implica humildade e respeito em relação ao restante da natureza. É o exato oposto da arrogância produtivista com que tratamos o meio ambiente sob as leis de mercado. Uma relação que começa a nos custar caro.

Como bicho, a onça é nossa caça. Como símbolo da natureza agredida pode tornar-se nossa predadora. Vir em busca dos porcos selvagens em que nos transformamos. Estaria chegando sua hora de beber a cerveja. Ou melhor, nosso sangue.

Leia também: Sejamos egoístas, salvemos a natureza

18 de outubro de 2011

Vexames da esquerda estatal

Entre 8 e 9 de setembro aconteceu um encontro em Buenos Aires promovido por “Capital Intelectual” e “Le Monde Diplomatique”. Sami Nair, professor da Universidade Pablo de Olavide de Sevilha, participou do evento. Em artigo publicado no jornal El País de 13/10, ele comentou:
Quanto às revoluções na Tunísia e no Egito, nos inteiramos pela boca de intelectuais vindos da Venezuela, do Brasil e inclusive da Argentina, de que estas não eram mais do que “movimentos sociais violentos” e de maneira nenhuma revoluções.
Diz Nair que tais setores acusaram os defensores das “revoluções árabes” de “complacência com o imperialismo ocidental”. E que:
...tudo parecia transcorrer como se, ao defender essas revoluções, nos dispuséssemos, sem sabê-lo, a aceitar possíveis intervenções imperialistas contra certos regimes atuais da América Latina.
Referindo-se à Líbia, Nair chama de “piada de mau gosto” a defesa que tais representantes da esquerda latino-americana fizeram de Kadafi como “amigo das revoluções”. E concluiu:
Esses “revolucionários” estão na realidade mais próximos da razão de Estados dos regimes que defendem do que da solidariedade com os oprimidos.
Ou seja, é muito provável que se trate de apoiadores de Dilma, Chávez e Cristina Kirchner. Antigos militantes e atuais ocupantes de postos num Estado que pensam controlar. Sempre dispostos a defender seus “governos de esquerda” acima de tudo. Inclusive, de levantes populares contra ditaduras sangrentas.

Claro que o imperialismo está intervindo nos acontecimentos do norte da África e Oriente Médio. Mas daí a defender ditaduras como a da Líbia há uma enorme distância. Consequência da crença estúpida de que socialismo do século 21 será produto de ações de cima para baixo. Vergonhoso!

Leia também: As duas posses de Evo Morales

Neuróticos, deprimidos, mutilados: explorados

Dizem que o profissional atual é aquele que se adapta rapidamente a um mercado em constante transformação. Não tem lugar e funções fixas. Troca de empresas rapidamente. Aprende novas habilidades, enfrenta novos desafios. Muitas vezes, ele mesmo torna-se uma empresa. Pessoa jurídica contratada por grandes corporações. Sua remuneração pode ser alta, mas insegura.

A doença mais comum desse profissional é a depressão. Segundo especialistas, ela é resultado desta constante mutação na vida laboral, que tira o chão sob os pés do trabalhador. Seria o oposto da neurose. Esta ataca o trabalhador de velho tipo. Aquele disciplinado pela rotina das tarefas repetitivas, do ambiente asfixiante das tarefas coletivas e tediosas.

Mas não se trata da substituição de uma doença pela outra. Rotinas massacrantes em grandes linhas de produção continuam a existir. Um exemplo delas são os trabalhadores em telemarketing. Mal pagos e sujeitos a condições extenuantes de trabalho mental.

Outro exemplo são os operários de grandes frigoríficos. São cerca de 800 mil trabalhadores no Brasil. Com 30 anos de idade e 5 ou 6 anos de atividade, seus operários já apresentam lesões irreversíveis. O risco de um desossador de frango desenvolver uma tendinite, por exemplo, é 743% superior ao de outros trabalhadores.

Ou seja, nem a classe operária nem seus sofrimentos acabaram. Só a China criou 80 milhões de operários de 1990 a 2002. Centenas de milhares deles, vítimas das mais variadas moléstias. De deformações físicas a suicídios.

O trabalho sob o capital continua mutilando física e mentalmente. Resultado de um sistema que é, ele mesmo, um aleijão histórico.

Leia também: Os patrões como operários do apocalipse

17 de outubro de 2011

Os patrões como operários do apocalipse

Em 16/10, o caderno de Economia de “O Globo” perguntou se o capitalismo estaria chegando ao fim. Os especialistas consultados deram resposta negativa. E estão corretos. Não se pode falar ainda em fim do capitalismo. A crise atual se mostra cada vez mais profunda e desastrosa. Mas estamos tratando de tempos históricos, que não se deixam datar com facilidade.

O real objetivo da matéria é desmentir previsões apocalípticas que Marx nunca fez. É verdade que ele afirmou que o capitalismo deixaria de existir um dia. Como, de resto, acontece a todos os fenômenos históricos. Mas o maior problema do capitalismo não é seu fim. É que ele prepara a barbárie como sua sucessora.

Não que seja o mais cruel dos sistemas produtivos. Porém, é o mais contraditório e perigoso deles. Seu funcionamento cria riquezas em volume nunca visto, mas é incapaz de distribuí-las. Sua tecnologia é espantosa, mas está em rota de colisão com as forças naturais.

Trata-se um sistema que se desenvolve gerando contradições insuperáveis para si mesmo. Na época de Marx, elas eram mais visíveis no nível social. Hoje, elas atingem também os limites ecológicos. Colocam em risco a vida da grande maioria da raça humana e de muitas outras espécies.

Deixado por si mesmo, o capitalismo levará a humanidade à ruína. Por isso, Marx dizia que seu fim tem que ser produto da ação humana consciente. Daí porque seus melhores seguidores sempre foram soldados da revolução, não operários do apocalipse. Este papel cabe aos patrões, que controlam o sistema e dele se beneficiam.

Leia também: Se a bóia chinesa furar, glub, glub...

14 de outubro de 2011

Se a bóia chinesa furar, glub, glub...

Um novo surto da crise econômica mundial pode estar se aproximando. Na terça, dia 11/10, o presidente do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet, disse que a crise da zona do euro "atingiu uma dimensão sistêmica". Nos Estados Unidos, o senado rejeitou o pacote proposto por Obama para a criação de empregos.

Diante disso, novamente as esperanças se voltam para a China. Mas os jornais mostram previsões nada animadoras para o gigante asiático. “China socorre seus 4 maiores bancos”, é o título de reportagem de Cláudia Trevisan para O Estado de S. Paulo publicada em 11/10. Segundo a matéria:
O governo de Pequim anunciou ontem que injetou capital nos quatro maiores bancos chineses, que emprestaram volumes recordes nos últimos dois anos e agora enfrentam o risco de aumento dos créditos podres em seus balanços.
Ainda segundo a reportagem:
A última vez em que o fundo realizou operação semelhante foi em setembro de 2008, logo depois que a quebra do Lehman Brothers desencadeou a crise financeira global.
Não é só isso. Outro problema para o sistema financeiro chinês:
...é a dívida dos governos locais, grande parte da qual contraída nos últimos dois anos. Levantamento do Escritório Nacional de Auditoria concluiu que esse débito estava em US$ 1,65 trilhão no fim de 2010 – o equivalente a 25% do PIB – e que alguns governos locais não conseguirão pagar o que devem.
Já o The Wall Street Journal de 13/10 alerta: “China teme crise bancária e vai socorrer empresas”. A reportagem de Lingling Wei diz que:
A China anunciou planos para dar apoio emergencial a empresas privadas com problemas, em meio a temores de que falências num setor crucial, que tem sofrido com a queda nas exportações, podem ameaçar o sistema financeiro.
Ou seja, o problema não atinge só os bancos. Há quem diga que os mais de 10% atuais de crescimento anual chinês podem despencar para cerca de 3%. O país foi considerado a bóia salva-vidas do capitalismo mundial quando a crise explodiu em 2008. Se a bóia furar será uma hecatombe para a economia global.

Leia também: 200 milhões de desempregados. Mas pode piorar

12 de outubro de 2011

Queremos a preguiça de Deus

“A raça humana é uma semana do trabalho de Deus”, diz a canção de Gilberto Gil. Depois disso ele descansou, conta a Bíblia. Não quis mais saber de trabalhar.

Então, por que suas criaturas desenvolveram tanto apego ao trabalho? Como diz Paul Lafargue, em seu livro “O direito à preguiça”, de 1883:
Homens cegos e limitados quiseram ser mais sábios do que o seu Deus. Homens fracos e desprezíveis quiseram reabilitar aquilo que o seu Deus amaldiçoara.
Até Cristo, continua Lafargue:
... pregou a preguiça no seu sermão na montanha: “Contemplai o crescimento dos lírios dos campos, eles não trabalham nem fiam e, todavia, digo-vos, Salomão, em toda a sua glória, não se vestiu com maior brilho.”
O autor marxista diz que o problema começou com a “civilização capitalista”. Nela:
... o trabalho é a causa de toda a degenerescência intelectual, de toda a deformação orgânica (...). Olhem para o nobre selvagem, que os missionários do comércio e os comerciantes da religião ainda não corromperam com o cristianismo, com a sífilis e o dogma do trabalho, e olhem em seguida para os nossos miseráveis criados de máquinas.
Para ele, o culto ao trabalho é uma vitória ideológica da burguesia. Os patrões conseguiram impor aos operários não apenas um trabalho torturante, explorador e alienante. Mas o entusiasmo por ele.

Muitos poderiam alegar que isso já não é verdade. Afinal, lazer, viagens, diversão e esportes ganham cada vez mais nossa atenção. O tempo livre teria conquistado terreno em relação ao ganha-pão chato e cansativo?

Infelizmente, não. O tempo livre é que entrou para o circuito das mercadorias sob domínio da indústria cultural. Foi tomado por atividades que proporcionam pouco prazer e geram muitos lucros. É um aprofundamento do que Lafargue denunciou.

Verdadeiro tempo livre só quando transformarmos avanços tecnológicos em avanços sociais. Quando dermos um fim à busca do lucro como motor social. Deus fez o que fez e entregou-se à preguiça. Queremos o mesmo.

Conheça Paul Lafargue e suas obras clicando aqui

Leia também: Greve no domingo pelo direito à preguiça

11 de outubro de 2011

Lênin na ocupação de Wall-Street

Centenas de pessoas estão acampadas em Wall-Street desde 17/09. Seriam parte de um novo movimento social. Um rompimento com a esquerda tradicional, seus partidos e sua política velha. Talvez, não seja bem assim.

Um dos cartazes vistos no acampamento diz "Bem-vindos aos Estados Soviéticos da América". Uma defesa do socialismo estatal stalinista? Improvável. Afinal, um dos alvos dos manifestantes é a estatização dos prejuízos da crise. O socorro que foi dado aos bancos pelo governo, às custas da maioria dos americanos.

É possível que indique a presença de um leninismo de que poucos suspeitam. Neste e em outros acampamentos espalhados por praças e ruas da Europa, África e Oriente Médio. Saibam seus participantes ou não.

Lênin defendia a ação organizada. Organização não falta aos acampamentos: alimentação, vigilância, segurança, banheiros, primeiros socorros, programações culturais e até salas de imprensa. Tudo administrado de modo comunitário, de baixo para cima. Como nos sovietes russos.

O leninismo defende palavras de ordem concretas. A Revolução Russa foi feita sob a exigência de “Pão, Paz e Terra”. Os indignados de Wall-Street dizem ser a voz “de 99% do país, e não a de 1% que continua enriquecendo". Difícil ser mais concreto.

Não há uma organização revolucionária disciplinada e centralizada, claro. Mas não deixa de haver centralismo democrático no funcionamento das assembléias. Onde o debate rola solto, mas as decisões são respeitadas e cumpridas unitariamente depois de aprovadas.

Não é bem Lênin. É o poder da luta que se organiza a partir de baixo. Algo que os revolucionários russos aprenderam a respeitar. Mais antigo, vivo e revolucionário do que parece.

Leia também: Revolta popular no centro do capitalismo

A ditadura eleitoral estadunidense

Os republicanos acharam que levariam a democracia para o mundo árabe invadindo o Iraque. A ironia é que foi o mundo árabe que nos deu uma lição de democracia e, posso garantir, estamos aprendendo rápido. (Valor - 07/10/2011)
A frase acima é de Brandon Klein, um dentre as centenas de jovens acampados em Wall Street. Pode parecer um exagero, mas não é. Ellen Wood, professora de Ciência Política na Universidade de York, Toronto, concordaria.

Em seu livro "Democracia contra o capitalismo", Wood afirma que o capitalismo é incompatível com a democracia, entendida como “o poder popular ou o governo do povo”. E essa incompatibilidade teria no sistema político estadunidense uma de suas origens. Segundo a professora marxista:
Nos Estados Unidos se inventou uma nova concepção de democracia formada por muitos indivíduos particulares e isolados que renunciam a seu poder para delegá-lo a outros para desfrutar de forma passiva de certos direitos civis e liberdades básicas. Em outras palavras, eles inventaram um conceito de cidadania passiva e despolitizada.
Por isso os movimentos sociais são tão fracos em terras ianques. É o que diz Richard Sennett, professor da Universidade de Nova York:
...os americanos não são bons em organizar movimentos sociais. Quero dizer, a esquerda não é. A direita é ótima: o Tea Party é muito bem organizado e sustentado. A esquerda tende a ligar os movimentos sociais a suas vitórias eleitorais, mas, quando não ela consegue vencer, eles se desmancham. (O Estado de São Paulo, 09/10/2011)
Trata-se de uma ditadura perfeita. Um sistema de partido único com duas alas: a republicana e a democrata. Ambas com divergências apenas quanto a que setores do grande capital servir prioritariamente.

Mas uma crise como a atual pode abrir brechas nesse poderoso bloco político. A recessão mina um dos pilares do sistema: o consumismo. E é novamente Sennet que avisa: “Quando se pode consumir os problemas ficam esquecidos, guardados”.

Neste caso, a experiência das revoltas árabes realmente é valiosa. Inspira os acampamentos montados em praças de várias cidades americanas. É o retorno do internacionalismo de combate na luta por uma democracia verdadeira.

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10 de outubro de 2011

Revolta popular no centro do capitalismo

Marx achava que o socialismo só daria certo se começasse pelos países mais industrializados, como os europeus e os Estados Unidos. Neles as relações capitalistas estariam mais desenvolvidas, assim como suas contradições. E estas se tornam mais agudas em momentos de crise.

Além disso, Marx descobriu que o maior problema do capitalismo não é a miséria absoluta. Pior que ela, são a enorme desigualdade e o aumento da exploração gerados pelo sistema. Século e meio depois, muitos fatos dão razão ao revolucionário alemão.

É o caso da revolta que começa a se espalhar pelos Estados Unidos. O movimento “Ocupar Wall-Street” não reúne só miseráveis ou trabalhadores manuais. Ao contrário, são milhares de jovens com razoável formação profissional. Muitos deles, com nível superior.

E este é outro fenômeno previsto por Marx. O da formação de um trabalhador coletivo. Uma massa de pessoas formada para atender à produção capitalista. Intelectuais e peões igualados na condição de proletários. E com dificuldades parecidas em relação ao mercado de trabalho.

Muitos dizem que as reivindicações do movimento são pouco claras. Mas no jornal Página/12 de 07/10, Stephen Foley traduz o que seria o espírito do movimento:
...somos mais de 99% de norte-americanos comuns fora dos ganhos da economia da era pré-recessão, golpeadas pela crise e ignorados no dia a dia nos assuntos políticos que vão desde a educação até o meio ambiente e a guerra.
A frase resume as principais razões da revolta. “99%” virou símbolo do movimento. Indica a enorme concentração de riqueza e poder na maior potência mundial. O descontentamento com a política oficial desmascara um sistema eleitoral controlado pelo grande capital.

É cedo para esperar desfechos revolucionários. Mas é possível antecipar grandes transformações.

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7 de outubro de 2011

Steve Jobs e a moderna maldição humana

Steve Jobs foi uma espécie de Henry Ford do final do século passado. E, tal como este, foi um campeão dessa moderna maldição humana: a ditadura do mercado.

Ford criou a linha de montagem, que subordinou de vez os trabalhadores às maquinas. Lançou automóveis que podiam ser comprados por seus operários. Foi um dos pioneiros na transformação do consumo em consumismo. Fenômeno que estendeu a imposição da lógica do trabalho à vida cotidiana. Além de trabalhar, é preciso consumir para ser alguém na sociedade industrial.

O fundador da Apple, por sua vez, criou o primeiro computador pessoal. Como o automóvel, é mais uma dessas maravilhas cuja utilidade se transformou em castigo. O primeiro suja, atravanca e mata nas grandes cidades. O outro torna a vida cotidiana cada vez mais uma extensão da vida profissional. Faz da vida urbana uma imensa linha de montagem.

Os aparelhos sofisticados de Jobs levaram o consumismo a extremos. Filas enormes se formam a cada novo lançamento. A religião do capital tem na Apple uma de suas seitas mais poderosas. Em seu fundador, um santo para quem fiéis acendem velas em telas de cristal líquido.Condição a que Ford nunca chegou. Até porque era admirador do diabólico Hitler.

O mais próximo que Jobs chegou disso talvez esteja representado pela famosa maçã mordida. Símbolo da rendição à tentação bíblica da serpente. O ato custou a danação da raça humana, mas também libertou seu potencial criativo. Jobs é um dos que melhor se aproveitaram dessa condição. Por isso mesmo, não são poucos os seus pecados.

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6 de outubro de 2011

Vão ter que engolir Lênin, também

A atual crise vem obrigando alguns analistas burgueses a admitir que Marx estava certo quanto ao capitalismo. Mas tudo indica que é só o começo.

Acaba de ser divulgado um estudo que revela uma imensa concentração do capital mundial. Trata-se de “The network of global corporate control” (“A rede de controle das corporações globais”). Obra de Stefania Vitali, James B. Glattfelder e Stefano Battiston para o Instituto Federal de Tecnologia de Zurique.

A pesquisa levantou dados de 43 mil empresas multinacionais. Chegou à conclusão de que 80% do valor delas são controlados por 737 bancos, companhias de seguros e grandes grupos empresariais. Destes, somente 147 dominam 40% do valor econômico e financeiro de todas as outras empresas globais. Mas neste último grupo, 50 gigantes capitalistas formam um clube ainda mais poderoso.

Os autores afirmam que tamanha concentração é altamente vulnerável a um “risco sistêmico”. Ou seja, se um vacila, os outros tremem e o mundo inteiro sacode. Também mostra o poder que tais grupos têm para fazer valer seus interesses junto aos políticos. Explica porque os governos insistem em aprovar planos que favorecem o grande capital e penalizam os trabalhadores.

Lênin já alertava para esse fenômeno em seu livro “Imperialismo, fase superior do capitalismo”, de 1917. Num trecho ele diz:
Há meio século, quando Marx escreveu “O Capital”, a livre concorrência era, para a maior parte dos economistas, uma “lei natural”. A ciência oficial procurou aniquilar, por meio da conspiração do silêncio, a obra de Marx, que tinha demonstrado, com uma análise teórica e histórica do capitalismo, que a livre concorrência gera a concentração da produção, e que tal concentração, num certo grau do seu desenvolvimento, conduz ao monopólio. Agora o monopólio é um fato. Os economistas publicam montanhas de livros em que descrevem as diferentes manifestações do monopólio e continuam a declarar em coro que o marxismo foi refutado. Mas os fatos são teimosos e, (...) gostemos ou não, é preciso levá-los em conta.
Gostem ou não os capitalistas, além de Marx, ainda vão ter que engolir Lênin.

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4 de outubro de 2011

Greve no domingo pelo direito à preguiça

Cansados de responder a e-mails e de se envolver com trabalho nas horas que deveriam ser de lazer, professores da rede privada do Rio Grande do Sul farão um "domingo de greve" amanhã.
O trecho acima é de reportagem de Felipe Bächthold para a Folha de S. Paulo, publicada em 01/10. Segundo a matéria:
...como as novas tecnologias aumentaram a disponibilidade dos professores a alunos, pais e direção da escola, eles reclamam de manter, sem pagamento extra, blogs e sites ou de colocar o conteúdo das disciplinas na internet.
O sindicato da categoria diz que essa prática chega a dobrar as horas dedicadas à escola, gerando mais casos de afastamento por doenças e estresse.

A reportagem também ouviu o economista Marcos Formiga, professor da Universidade de Brasília. Ele vê no caso “um atrito entre estudantes que têm grande intimidade com novas tecnologias e professores resistentes ao uso de novos meios de comunicação”. Algo que ele considera irreversível: “Não haverá mais educação sem o uso de tecnologias mediadoras do conhecimento", diz ele.

Mas o que parece irreversível mesmo é a invasão do tempo livre pelas relações de trabalho. E não só as formalizadas por registro em carteira. Até o mais humilde vendedor ambulante enfrenta longas jornadas de trabalho. Ou seja, nem os desempregados estão livres do controle do capital sobre suas vidas. Junto com outros direitos sociais os patrões nos tiram também o direito ao lazer.

No entanto, nada disso é recente. Já em 1883, Paul Lafargue, genro de Marx, escreveu “O direito à preguiça”. O texto denuncia o tratamento sagrado dispensado ao trabalho. Como se não fosse uma tortura para a grande maioria dos que vivem dele. Voltaremos a falar dessa obra em breve.

Leia também: O neoliberalismo nos sindicatos

3 de outubro de 2011

O neoliberalismo nos sindicatos

Várias grandes categorias estão em greve ou saíram delas recentemente. É o caso do pessoal administrativo das universidades federais, dos professores de vários estados, dos trabalhadores dos correios e dos bancários. É a classe trabalhadora exigindo sua parte no tão falado crescimento econômico.

Muitas dessas categorias têm governos como patrões. E se deparam não apenas com o desrespeito e autoritarismo deles. Suas próprias direções sindicais representam obstáculos. É que muitas delas ajudaram a eleger tais governos. E vários de seus diretores foram nomeados para cargos públicos.

No caso dos bancários, o caso parece mais grave. Há muitos anos, as direções sindicais dos trabalhadores no sistema financeiro vêm se rendendo ao discurso patronal. Defendendo diálogos “civilizados” e entendimentos “propositivos” com os tubarões das finanças. Ou seja, assumindo um sindicalismo ao gosto do neoliberalismo.

Na atual greve, não poderia ser diferente. E quem alerta é ninguém menos do que Olívio Dutra. Muito antes de ser governador e prefeito, Dutra foi bancário. Presidiu o sindicato de Porto Alegre nos anos 70. Comandou uma greve geral do setor em 1979. Por isso, foi preso pela ditadura e perdeu seu mandato sindical. É fundador da CUT.

Recentemente, ele criticou o sindicato que presidiu. Desaprovou a contratação de pessoal para distribuir panfletos na atual greve da categoria:
Esse procedimento é deseducativo e demonstra a desmobilização da categoria. As razões da greve existem, são reais, mas essa prática mostra um descolamento do sindicato da sua base. É a chegada do neoliberalismo ao movimento sindical. Tudo se terceiriza, tudo se compra e se paga, até a militância. (Zero Hora – 01/10/2011)
Dutra só se equivocou quanto ao momento. A lógica neoliberal vem ganhando o meio sindical há uns 20 anos. A conquista da CUT é só um pouco mais recente que isso.

Leia também: Greve dos bancários e superexploração

2 de outubro de 2011

Aos neoliberais, a maldição dos neutrinos

Uma notícia abalou o mundo científico no final de setembro. Envolve um experimento realizado no acelerador de partículas conhecido como Cern, na Suíça. Seus resultados parecem contestar um elemento central da Teoria da Relatividade, de Albert Einstein: a idéia de que nada viaja mais rápido do que a velocidade da luz.

Os dados mostram que partículas conhecidas como neutrinos teriam viajado 60 bilionésimos de segundo acima desse limite. Parece pouco, mas se os resultados se confirmarem causarão um grande estrago na ciência física. E com conseqüências para nosso dia-a-dia, também.

Em artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo, em 01-10, Saswato R. Das conta que:
Qualquer pessoa que usa um GPS para encontrar um endereço está se beneficiando de uma aplicação prática da Teoria da Relatividade - os satélites do Global Positioning System são programados para dar conta dos efeitos da relatividade.
Das avisa ainda que se o experimento for considerado correto:
A relação de causa e efeito - a causalidade - seria afetada. Qualquer pessoa viajando mais rápido do que a luz conseguiria ver os fragmentos de um vaso quebrado se recompondo. Os viajantes mais rápidos do que a luz poderiam voltar no tempo - por exemplo, deixar Nova York para Paris numa noite e retornar no dia anterior.
Enquanto isso, coisa muito pior vem acontecendo na ciência econômica. Há uns 40 anos, os teóricos neoliberais dominam. Consideram a economia uma ciência exata e o capitalismo, sistema universal e eterno. A crise que começou em 2008 está derrubando esse castelo de cartas.

Mas os acadêmicos neoliberais fingem que nada mudou. E os governantes das principais economias continuam a se fiar neles. Não param de adotar medidas neoliberais contra os povos do mundo.

Se o experimento da Suíça se revelar correto, restaria, pelo menos, uma grande esperança. Poderíamos voltar no tempo e exilar os neoliberais numa dimensão espacial paralela ou coisa assim. Que lhes caia sobre as cabeças a maldição dos neutrinos.

Leia também: Eles devem, não negam, nós pagamos