Doses maiores

21 de junho de 2010

Saramago e as vacas de presépio

Em geral, a cobertura da grande imprensa sobre a morte de José Saramago escondeu suas atitudes militantes. Citou sua condição de comunista como se fosse uma esquisitice de velho. Não citou, por exemplo, a forte ligação do escritor com o MST.

Em um trecho de “A viagem do Elefante”, Saramago parece fazer uma metáfora sobre o que acontece a muitos daqueles que se recusam a abandonar a luta.

Trata-se da “...história de uma vaca que se perdeu nos campos com a sua cria de leite, e se viu rodeada de lobos durante doze dias e doze noites, e foi obrigada a defender-se e a defender o filho, uma longuíssima batalha, a agonia de viver no limiar da morte, um círculo de dentes, de goelas abertas, as arremetidas bruscas, as cornadas que não podiam falhar, de ter de lutar por si mesma e por um animalzinho que ainda não se podia valer, e também aqueles momentos em que o vitelo procurava as tetas da mãe, e sugava lentamente, enquanto os lobos se aproximavam, de espinhaço raso e orelhas aguçadas. Subhro respirou fundo e prosseguiu, Ao fim dos doze dias a vaca foi encontrada e salva, mais o vitelo, e foram levados em triunfo para a aldeia, porém o conto não vai acabar aqui, continuou por mais dois dias, ao fim dos quais, porque se tinha tornado brava, porque aprendera a defender-se, porque ninguém podia já dominá-la ou sequer aproximar-se dela, a vaca foi morta, mataram-na, não os lobos que em doze dias vencera, mas os mesmos homens que a haviam salvo, talvez o próprio dono, incapaz de compreender que, tendo aprendido a lutar, aquele antes conformado e pacífico animal não poderia parar nunca mais”.

Não mataram Saramago. Tentam matar suas idéias e convicções. São as vacas de presépio, que vivem a bater cabeça para os poderosos.

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